Aquela tarde de junho em Medellín
Tudo acontecera rápido demais. Uma imensa e espessa nuvem de fumaça negra tomava conta de parte do aeroporto.
Gritos horríveis anunciavam a eminente presença da Morte. Um homem tossia como nunca e corria como se daquilo dependesse sua vida. Tentava enxergar algo no meio daquela inacreditável névoa quente e escura. Não queria pensar o pior, mas certamente havia acontecido. Sentiu um impacto demasiado próximo. Certamente uma peça de fuselagem ou parecida havia caído ali perto. Deu graças a Deus por não ter sido atingido. Precisava saber. Tinha de. Daquilo dependeria o futuro da Terra.
Apenas minutos depois, Volgin nunca sentiu o Fim tão próximo. Os aviões tinham se chocado de forma brutal menos de um minuto antes. Explodiram com tal força que o homem admirou-se, assustado, de ninguém ali fora ter se ferido. E apavorado estava ao pensar que podia ter morrido, ou gravemente se ferido, junto dos outros, que decerto estavam mortos ou pelo menos seriamente feridos. Talvez com quase nenhuma chance de sobreviver.
O caos causado pelo acidente terminou com a chegada do resgate. Ou pelo menos em teoria. Era possível ouvir vozes muito altas fazendo comentários consternados. Outros, furiosos. Mais deles, inconformados. Todos, porém, com o mesmo sentimento: uma tragédia inominável havia ocorrido e nada eles podiam fazer para revertê-la.
Na verdade, porém, alguém podia. Ou pelo menos o homem ali presente achava. Miguel Ângelo, nome de batismo do célebre hematologista Dr. Volgin, esperava que pelo menos uma centelha de vida ainda corresse por aquele corpo agora carbonizado no chão do aeroporto. Reconhecível pela perfeita arcada dentária, documentos e duas plaquinhas com nome e endereço.
Deus, que visão horrível, pensava ele enquanto tinha certeza de aquele acidente não tinha causas típicas de um aéreo. Nada de problemas topográficos ou meteorológicos. Menos ainda problemas de motor ou coisa parecida. Sim um atentado cuidadosamente planejado por criaturas malignas desejosas de impedir a união dos Guerreiros da Lua. De repente, chorou de raiva. Não era justo. Ele não merecia! Os malditos responsáveis iriam pagar não importava quanto tempo demorasse! Janus decerto já sabia. Com certeza estava furioso. E mais certo ainda era sobre o Ancestral não desistir da vida do cantor por mais pouco provável que fosse ele ainda viver após aquilo.
Alguém talvez se pergunte como ele sabia de tudo aquilo. Miguel Ângelo, ou simplesmente Dr. Volgin, era um dos poucos humanos a conviver com a fauna sobrenatural mesmo não sendo vampiro, lobisomem, bruxo, Caçador ou algo parecido. Janus, um dos mais poderosos Ancestrais, gostara muito do então rapaz recém-formado médico. Ele achou que o jovem poderia aprender a não ser tão obtuso como os outros mortais. Motivo pelo qual criou uma ligação mental com o médico, que sempre se assustava com aquilo. Miguel nunca acharia ser capaz de mudar alguns de seus conceitos fortemente arraigados desde o nascimento. O fizera, porém.
Às vezes, no entanto, perguntava-se se realmente conseguira mudar todos. Era um tanto difícil conviver com algumas coisas, na verdade. Especialmente o incondicional carinho que Gardel lhe dedicava quando se encontravam. Tinham os dois criado amizade durante a fase final da vida da esposa do médico, uma doente terminal de leucemia. A senhora Volgin era incondicional fã do “Zorzal Criollo” e um de seus últimos pedidos havia sido uma visita e uma canção. Miguel atendeu o desejo e desde esse dia, o cantor nunca mais havia se separado dele. Os dois haviam criado intensa ligação embora o hematologista se assustasse dela com mais frequência do que desejava.
Agora, entretanto, percebeu que sentiria muita falta dele. De sua forma espontânea de ser. De quando o abraçava com profundo carinho. De sua voz inigualavelmente única. Novamente chorou. Dessa vez, ajoelhado ao chão e as mãos ao céu em entristecida oração. As lágrimas ainda lhe corriam soltas quando um policial ofereceu-se para ajudá-lo a levantar, dizendo lamentar por aquela horrível perda. E que se quisesse, poderia acompanhar o transporte dos cadáveres ou ir ao hospital com os sobreviventes. Volgin escolheu ir à morgue após sentir uma ponta de dor na cabeça, sinal que Janus lhe enviava uma mensagem...
“Esteja na morgue durante a necropsia. Já descobri o autor da trama macabra. Explicarei quando chegar. Irei pelos esgotos abaixo da cidade.”
Apenas meia hora depois, o médico estava junto no escritório médico legal da cidade pronto para muito provavelmente reconhecer os corpos. E quem sabe fazer algo mais complicado. Estranhou que um corpo havia chegado ali pela porta dos fundos, mas nada disse. Achou igualmente estranho que alguns legistas estivessem com os olhos fixos em única posição. Será que eles estavam sendo manipulados? Se fosse, como Janus teria feito? Tecnicamente, era impossível ele fazer aquilo de uma distância tão grande. Ou será que o vampiro já estava escondido no esgoto desde o amanhecer?
Veio a resposta quando alguém o chamou para a sala onde o corpo de Carlos Gardel agora se encontrava. Entrou mesmo que a visão do cantor morto fosse ainda mais horrível naquela distância tão curta. Perguntou: - E a sua equipe? Vai demorar?
- Eles já estão autopsiando o falso cadáver de Carlos Gardel. Nós vamos levar o verdadeiro para onde o mestre está – respondeu ele para o espanto de Volgin, que gesticulou desejando entender como assim aquilo estava acontecendo. E quem era ele.
O legista disse chamar-se Alfredo. Servo fiel de Janus há mais de dez anos. E hoje tinha servido de “receptáculo espiritual” para que o vampiro pudesse agir no local armando devidamente para pensarem sobre Gardel estar definitivamente morto. Volgin disse agora reparando que alguns tecidos do corpo lentamente regeneravam-se:
- Como ele... faz isso? Ele te disse alguma coisa sobre quem fez todo esse horror?
- Janus tem poderes que nem mesmo eu sei explicar. Apenas vi como ele usa. Não é muito confortável, mas às vezes é necessário – Alfredo deu uma pequena bufada e logo respondeu à outra pergunta: - Parece que tem um Antigo como mandante. Não sei os detalhes, mas pelo visto é algo envolvendo uma possível vingança em razão de fatos ocorridos há séculos. Só mesmo ele pode nos dizer alguma coisa. Ele já deve estar se materializando pelas tubulações do esgoto.
Minha nossa, pensou Miguel. Cobriu Gardel com o lençol da morgue não sem antes perceber que um dos olhos dele encontrava-se intacto apesar do horroroso acidente. Perguntou qual era a “causa mortis”...
- Queimaduras de quarto, quinto e sexto grau generalizadas e sangue na região temporal, maçãs do rosto e no olho direito. Em razão das queimaduras, parte das costelas está exposta. E as pernas foram quase amputadas e estão brutalmente retorcidas devido ao fogo. Os pés vão precisar de sério reparo, estão quase incinerados – o legista dizia enquanto pensava em como Janus iria consertar aquele dano todo. Duvidou que o poderoso sangue do Ancestral fosse fazer perfeita reconstrução, porém, achou melhor esperar.
- Por Deus, nem me diga algo assim. Será mesmo que ele ainda vive? Eu sei sobre aquilo de, em razão do sangue Ancestral, o coração trabalhar tão fracamente que nenhum ouvido humano é capaz de ouvir, mas nesse caso, foi sério demais para não achar qualquer coisa – Volgin pôs a mão na boca em nervosismo.
- O corpo dele está regenerando muito devagar, mas está, então podemos ter esperança. No entanto, ainda vamos precisar trabalhar para que ele pareça como antes. Ou pelo menos ficar próximo disso – o legista estava ansioso para sair logo dali.
- Nós vamos conseguir, se assim o destino quiser, amigos – uma voz forte e poderosa ecoou na sala e logo uma espessa névoa tomou a exótica forma de Janus. Um sorriso dobrava os bigodes de forma engraçada e a careca brilhava a despeito da fraca luz da sala. O cavanhaque pontudo dava-lhe aparência de gênio de histórias fantásticas árabes embora sua pele fosse clara de tal modo que ele podia ser transparente.
- Por favor, você pode contar sobre o porquê de todo esse absurdo? – o hematologista via-se curioso. E assustado.
O vampiro suspirou: - Vingança. O desgraçado que armou isso achou por bem tentar me fazer pagar por tê-lo impedido de ir em frente com um absurdo plano de obter o poder absoluto neste mundo usando uma invocação da qual não ouso dizer o nome. O principal ajudante humano dele está nesse momento sendo autopsiado no lugar do verdadeiro cantor. Com direito a mesma bala no pulmão que tem meu pobre garotinho. E não vou dizer que estou arrependido de tê-lo matado. Qualquer coisa para salvar “el morocho de Abasto” e a Terra. E se isso incluir minha morte definitiva, aceito de bom grado.
- E se esse tal descobrir, o que faremos? – Alfredo temia que algo desse errado.
- Eu já tenho um “plano B”, meu amigo. Se esse Antigo pensa conseguir seu objetivo, ele engana-se. Quando ele menos esperar, irei arrancar sua cabeça e mostrar aqueles aliados dele que comigo ninguém se mete e sai impune! – exclamou ele com raiva, deixando Volgin espantado: - Não é melhor sairmos logo daqui? O processo terá melhor efeito se for logo iniciado, não acha?
Janus concordou, percebendo que começavam a perder tempo. A sobrevida causada por seu sangue daria pelo menos doze horas extras para Gardel. A transformação de certa forma havia começado, porém, ele seria capaz de resistir à toxicidade do sangue da criatura Ancestral? Miguel não tinha certeza embora tivesse passado os últimos dez anos dando aquele perigoso líquido ao cantor colocando em suas bebidas, no que ele comia, nos cigarros, etc. Sentia-se culpado por aquele “envenenamento”, mas quanto mais cedo começasse, maiores eram as chances de o cantor sobreviver à transmutação quando ela ocorresse.
Admitia Volgin, porém, não gostar das circunstâncias colocadas naquele caso. Em razão de o acidente ter sido causado por um poder diabólico, os ferimentos eram muito mais difíceis de curar e até mesmo exigiriam um tratamento muito mais rigoroso. No fim das contas, já estavam saindo do prédio pela porta dos fundos com o corpo do cantor em uma maca coberto por um lençol. Iriam eles cuidadosamente transportá-lo ao fim da cidade de Medellín.
Meia hora depois, estavam em uma mansão digna de Hollywood. O tempo continuava tão ruim quanto na hora do acidente. Alfredo e Miguel levaram Gardel para dentro do local com muito cuidado e logo o puseram sobre uma mesa, descobrindo-o para ver se mais tecido havia regenerado. Espantaram-se ao ver que grande parte da carne havia recuperado a antiga aparência embora algumas partes apresentassem início de necrose e o couro cabeludo estivesse seriamente danificado. As pernas continuavam com os mesmos cortes. Necessitariam de fortes suturas para se recolocarem no lugar. O rosto, por sua vez, apresentava desfiguração séria em um dos lados, indo da testa até o queixo em diagonal.
- Coloquem-no naquele tanque. Está repleto de sangue humano misturado ao meu. Ele ficará ali até termos de condições de fazer procedimentos definitivos. Eles necessitarão que o deixemos com as mínimas condições de ser submetido a estes processos – disse Janus para em seguida ajudar os dois a fazerem a transferência.
Antes que o colocassem no enorme recipiente, porém, o Ancestral olhou-o com reverência e passou uma das mãos sobre o cabelo que ainda voltava a crescer:
- Descansas, meu anjo. Fiques tranquilo. Eu sempre estarei ao teu lado. Agora, tenha longos e bons sonhos, filho meu.
- Quanto tempo? – Volgin sabia que o vampiro havia colocado seu futuro discípulo em longo sono. Que tornaria possível recuperá-lo sem maiores problemas. Janus nada disse, mas seu silêncio parecia dizer: o quanto fosse necessário.
Ou pelo menos eles esperavam que assim fosse. Seria um longo tempo repleto de estranhas expectativas.
De repente, o Fim não parecia mais tão próximo.
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Personagem não histórico:
Miguel Ângelo Volgin – Um respeitado e conceituado hematologista de 47 anos. Descendente de russos fugidos do terrível governo do czar Nicolau II. Grande amigo do cantor Carlos Gardel, por quem nutre grande consideração. Acaba ajudando Janus com seu complicado segredo e tem uma segunda chance no amor ao conhecer Thora, uma bruxa em treinamento. No entanto, fica seriamente dividido entre ela e sua antiga namorada Victoria, com quem teve uma complicada história 24 anos antes embora ela tenha começado há 31. Ele não imagina, porém, que o segredo de Janus vai trazer-lhe tantas dores de cabeça quanto possível.
Criaturas citadas:
Vampiros Antigos - Criaturas noturnas com menos poder que os Ancestrais embora sejam bastante poderosos quando bem treinados. Geralmente têm menos de mil anos, mas há muitos que ultrapassam esse número. É muito comum serem transformados por Ancestrais embora a maior parte dos casos aconteça através de vampiros ditos "comuns". Exemplo: Dora, uma Antiga de quatrocentos anos e Leopoldo Belmondo, com 477 anos.