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Esse conto mais curto é uma homenagem pela ocasião dos dezenove anos da desaparição física do pianista e compositor Osvaldo Pugliese, falecido em 25/07/1995.
A boa morte
1995, algum dia do mês de julho...
Ela havia ido visitá-lo. A noite já se fazia caída, perto da madrugada, em Buenos Aires quando ela atravessou a porta de onde ele se encontrava, em seus derradeiros dias. Osvaldo Pugliese dificilmente chegaria aos noventa anos completos na condição em que se encontrava. O pianista reconheceu a bela e pálida figura usando um longo e liso vestido azul de mangas longas que agora se encontrava perto de sua cama, tão diferente da primeira vez que a havia visto...
- Eu não esperava vê-la de novo, Paquita. Quantos anos? Setenta ou alguns menos?
- É, “fiz aniversário” dia 14 de abril. E nunca entendi como soube sobre mim – disse ela puxando uma cadeira e sentando-se.
- Você sempre foi uma figura marcante, senhorita Bernardo. Dificilmente eu não entenderia apesar da complexidade de sua situação. Situação essa que nunca quis ter comigo – disse ele ao lembrar-se de quando havia recebido a proposta de imortalidade pela figura ali presente e ela lembrou-se da recusa do mesmo, alegando que tinha amigos e uma família a prezar e que não necessitava ser imortal para ter a vida que gostava. E o pianista estava certo de que apesar de tudo, havia tido uma boa vida, cercado de pessoas, e fazendo tudo, que realmente amava.
E agora, tudo o que ele desejava era uma boa morte, preferencialmente tranquila e serena, assim como era a primeira maestrina que havia tido em sua carreira...
- Pugliese, eu... sempre respeitei sua vontade, mas saiba que... vou sentir a sua falta, mi muchachito – disse a bandoneonista com tristeza, pois nem todos podiam viver tanto quanto ela e isso muito a entristecia, porém, Paquita sempre tinha de se acostumar com o fato de que nem todos achavam a imortalidade um presente.
No entanto, ela mesma muitas vezes se questionava se ser fisicamente eterno era mesmo um presente. Ela não podia ver a luz do dia. Sua alimentação básica era sangue embora pudesse comer alimentos sólidos caso seu sistema estivesse revivido pelo “elixir da vida”. Procurava não matar, porém, sentia terrível vontade de fazê-lo quando via como parte das pessoas estava se tornando cada vez pior e os atos cada vez mais hediondos cometidos por quem se dizia “humano”.
Ao mesmo tempo, porém, existiam humanos que realmente se dedicavam ao bem, muitas vezes arriscando suas próprias vidas em nome disso. Não eram raros aqueles que acabavam desaparecendo fisicamente por essa razão. Quantos ela havia salvado e quantos ela não havia podido salvar. Quantos outros agora eram esquecidos apesar de tudo o que haviam feito em nome de obter o melhor para todos. E outros que passavam por esta vida sem sequer serem conhecidos por suas boas obras?
Na verdade, era sempre difícil colocar na balança os prós e os contras daquela vida e medir qual dos lados pesava mais. Ambos os lados tinham igual peso. Era bom e ruim ao mesmo tempo. A imortalidade, no entanto, não era apenas ser como ela era. Existia outro modo de tornar-se imortal: deixando boas lembranças nos corações daqueles que amamos e/ou obras inesquecíveis para apreciação daqueles capazes de amá-las em sua plenitude. Aquele modo era exatamente o que Pugliese obteria: Recuerdos e La yumba, ademais de tantas outras composições, eram obras que dificilmente seriam esquecidas pelos apreciadores de verdadeiro tango. E ele era uma pessoa muito agradável de conviver, além de possuir um grande e amável coração.
- Paquita, não chore por mim, por favor – pediu o velho pianista ao perceber que sua antiga regente havia abaixado os olhos.
Ela novamente os levantou e o olhou tristemente: - Me acostumar a sua futura ausência dói muito. Entenda. Eu te conheci quando você era tão só um garotinho e te ver agora enquanto permaneço eternamente a mesma não é algo fácil.
- Todos nós temos uma missão neste mundo, Paquita. Sinto que a minha já terminou – disse ele sorrindo como se dissesse que apenas fazer o que gostava e ter sido um sucesso por isso já havia sido o suficiente para uma vida inteira, para em seguida segurar debilmente a fria mão dela: - Talvez a sua ainda não tenha acabado, seja o que isso queira dizer. Há neste mundo mistérios que nem todos podem compreender, mesmo eu não posso. No entanto, se quer saber, não me importo. Tive tudo o que quis nesta vida e até mesmo o que não precisei. Apreciei cada momento vivido e cada nota tocada.
- E eu amei cada minuto em que pude conviver com você, Osvaldo Pedro Pugliese – respondeu ela feliz, embora entonações de tristeza se escondessem em sua voz.
Ambos estavam emocionados. Ele por rever uma velha amiga. Ela porque o pianista ainda se recordava dela com muito carinho. Os dois trocaram um longo olhar repleto de amizade até que ela disse, com certa dor em seu coração há tanto tempo parado: - Adeus, meu amigo.
- Não é um adeus, não quando sei que levarei você para sempre em minhas lembranças – respondeu ele sorrindo para receber uma réplica: - E você permanecerá eternamente nas minhas.
A magia do momento havia se dissipado. Paquita Bernardo tomou as ruas de Buenos Aires mais uma vez. Perguntou-se se algum dia veria a luz do sol novamente. Questionou-se se aquela sina valia a pena. De repente, porém, as perguntas foram embora, dando lugar a uma adorável resposta: só pelo amor valia aquela não vida, que também era não morte. Sim, o amor a havia levado até ali. No fim, apenas o amor, em todas as suas formas, era infinito, a despeito de qualquer coisa.
Até mesmo da boa morte que Osvaldo Pugliese teria no dia 25 de julho.
Sobre Osvaldo Pugliese: http://www.todotango.com/Creadores/Creador.aspx?id=28" onclick="window.open(this.href);return false; (Aqui vocês podem ouvir um pouco da extraordinária habilidade dele com o piano.)
A Paquita já é conhecida nossa, rsrsrs: viewtopic.php?f=53&t=9740" onclick="window.open(this.href);return false;
Aviso para o próximo conto: eu fiz algo bem polêmico considerando alguns relatos sobre certo personagem que ouvi de uma tia minha que viveu 28 anos na Argentina. Se vocês são mente aberta como eu sei que são, certamente irão gostar do próximo.