
O Crânio e o Corvo
Mesmo passada uma década, os pesadelos continuavam. Não havia um dia que ele não daria tudo para ter evitado aquela tragédia...- Já são anos de terapia. Vale mesmo a pena eu continuar aqui? – o homem se viu questionando a calma mulher que à sua frente se encontrava observando-o com um misto de carinho e piedade.
- O senhor sabe muito bem o que é melhor para si mesmo. Se quiser, a porta está aberta. Não vou impedi-lo – respondeu a psicóloga continuando a observá-lo.
- Não posso simplesmente desistir. Uma hora vou ter que deixar isso para trás. Afinal, faz parte do meu trabalho e muitas vezes... é inevitável – respondeu ele pondo as mãos na cabeça.
- Você atirou nele porque teve uma razão. O que ele estava fazendo era um crime contra a integridade de quem ele jurou amar e respeitar. E o senhor sabe disso muito bem – disse a profissional.
- Já disse que pode me chamar de Antonino ou Porcel. Nós somos não apenas paciente e terapeuta, somos também amigos, Letizia – disse o paciente com um sorriso.
- É difícil chama-lo só pelo nome quando tenho tanto respeito por você. Afinal, você é um delegado que realmente merece seu posto. O senhor é como poucos que conheço – disse ela feliz.
Às vezes, o delegado Antonino Porcel não sabia bem como reagir a certos elogios que recebia. Ele apenas cumpria seu dever como delegado e principalmente, ser humano. No entanto, nem todos entendiam como Letizia fazia. Muitos que deveriam prezar pelo cumprimento da lei a contrariavam fazendo todo o tipo de negócio sujo com os piores tipos. Em troca de variadas vantagens que iam desde dinheiro até ajuda para livrar-se de desafetos.
O “licenciado” era um desses desafetos dos quais muitos de seus semelhantes desejavam se livrar. Porcel não era do tipo de se vender por qualquer coisa. Muito menos deixava de fazer seu trabalho por mais complicado que fosse. Contudo, o delegado também tinha seus “negocios sucios”, porém, em nada se pareciam com algo considerado normal. Antonino possuía um dom. Uma capacidade da qual apenas ele sabia. Uma sabedoria perigosa e até mesmo fatal se mal utilizada. Que ele jamais soube o porquê de receber.
Tudo que ele sabia era de quando havia acontecido. Era apenas uma criança. Recuperava-se de um grave acidente onde perdeu os pais quando viu a mulher parada à beira de sua cama. Ela irradiava amor e bondade dizendo-lhe que era possível encontrar a felicidade mesmo nos momentos mais sombrios. Se não se esquecesse de acender a luz. E ela havia lhe dado aquela capacidade. A de canalizar os fantasmas para que eles pudessem resolver suas pendências antes de partir. Podia tomar a aparência do morto cujo fantasma o possuísse e assim ambos trabalhavam em um estranho conjunto.
No entanto, junto com isso havia um adendo: ouvir vozes que lhe davam avisos de perigo eminente. Isso havia sido a causa do início de uma investigação ocorrida há dez anos. Inicialmente, o delegado havia estranhado a denúncia feita por uma moradora de uma comunidade próxima à cidade de Rosario. Ali não era sua jurisdição, porém, se viu obrigado a averiguar a denúncia quando a pessoa em questão havia desaparecido. Não um sumiço como os outros. Um mais psicológico que qualquer outra coisa. Porque a mulher parecia que tinha sido lobotomizada, pois estava agindo completamente diferente do que ele vira antes. Como uma boneca manipulável.
O mais estranho, contudo, era que o delegado local parecia não ligar para aquelas mudanças estranhas ocorridas no local que ele deveria proteger. Apesar dos protestos de alguns colegas da capital, Porcel decidira averiguar a situação e preferencialmente descobrir a verdade por trás daquilo.
Que verdade terrível tinha sido aquela. Antonino Porcel havia irrompido em uma fúria jamais antes vista. Quem aquele cientista desgraçado pensava que era para fazer o que estava fazendo? Que tipos de covardes eram aqueles que o apoiavam? Com qual direito alguém usava a ciência para cortar a vontade de uma pessoa a ponto de fazê-la ser um fantoche? Ambos haviam merecido as balas levadas.
O cientista morreu. O homem que o protegia, na ocasião tentando transformar a própria esposa em uma boneca sem vontade, ficado em coma. Um risco alto de jamais acordar. Um castigo merecido, no ponto de vista da Polícia Federal, que havia atendido sua queixa após muitas horas de conversa. E o delegado da comunidade? Ele havia sido destituído do cargo, exonerado da polícia e preso por cumplicidade criminosa. Nunca disse uma palavra sobre aquela época. Um câncer o matou sete anos depois. E ele nunca se permitiu, até o último momento, limpar a consciência daquela sujeira machista e cruel.
- Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas – um sussurro entrou repentinamente na mente do delegado, que se viu quase pulando da poltrona do consultório.
- Pensei que você não ia se mexer pelo resto do dia – Letizia ficava assustada com os longos períodos silenciosos e pensativos de Porcel quando eles ocorriam.
- Estava pensando no que você me disse e de repente, vieram lembranças e... alguma coisa ruim – Antonino odiava ser o mensageiro das más notícias, mas agora era inevitável. O homem em coma despertou.
- Aquela “capacidade de premonição” que faz todo mundo te chamar de “O Crânio”? – perguntou a terapeuta lembrando-se do quanto o “licenciado” odiava ser chamado daquele jeito, não pelo apelido em si, mas pelo motivo do mesmo.
A pergunta ficou no vácuo em razão de que o telefone do delegado tocou: - Maruja?
- Porcel, não tem como dizer que isso é boa notícia, mas, aquele corvo desgraçado acordou do coma. Vou esperar os médicos fazerem os exames nele e daí eu e o José Armando daremos voz de prisão com aquele mandado que o senhor sempre renova – disse a policial Maruja Córdoba, considerada uma das melhores subordinadas do delegado.
- Ele... parecia bem? – Antonino estava certo de que algo muito estranho iria acontecer.
- Pelos exames preliminares, ele respondeu muito bem aos estímulos. Uma das enfermeiras até estranhou a resposta tão imediata, considerando... – a conversa foi interrompida por uma série de altos barulhos que vinham da sala de exames, como se alguma coisa estivesse sendo jogada.
- Córdoba, fala comigo! – o delegado de repente sentiu uma horrível sensação esmagando seu peito. Repentinamente gritava ao telefone implorando que alguém lhe respondesse.
- Delegado, eu não sei como explicar, mas ele... enlouqueceu! – José Armando tinha pegado o celular da colega enquanto a mesma tentava proteger médicos e enfermeiras da “fúria tele cinética” do paciente recém-desperto. Ele não parecia nada feliz em saber ter perdido dez anos de sua vida em cima de uma cama.
- Como assim ele... enlouqueceu?! – o delegado não entendia nada e menos ainda compreendia aquele terrível barulho de coisas sendo jogadas e explodidas.
- Ele... saiu andando sem nem ao menos piscar e nem parecia que dormiu por dez anos ininterruptos – respondeu o policial para depois dizer: - E repentinamente, um dos médicos saiu voando porta afora. Ele praticamente virou a Carrie do Stephen King, só que com músculos e barba!
- Isso... – o delegado se viu mudo de pavor enquanto Letizia quase se encolhia em sua poltrona ao ouvir a altíssima conversa ocorrida.
O delegado se viu olhando para o céu. Pediu a Deus que aquilo fosse só um pesadelo. Enquanto no outro lado da linha ainda fazia o mesmo barulho de antes. A frase antes ouvida ecoava em seus ouvidos como um malicioso sussurro feito por uma maligna voz feminina que o delegado reconhecia: - Rarotonga.