

O Vampiro Arqueiro
O menino nasceu no primeiro dia do signo de Sagitário de 1845. Os pais, imigrantes espanhóis, fiéis serviçais da fazenda Villa Real, batizaram-no como Emiliano Pedro, homenageando os avós. Apenas um dia após o nascimento, registraram-no como Emiliano Pedro Luján Azurra.
Conforme os meses foram passando, o bebê mostrava-se muito curioso e inteligente. Os donos da fazenda, incapazes de gerar filhos, escolheram-no como afilhado e de tudo lhe deram desde a mais tenra idade. Encantaram-se por quão bonita era aquela criança. E por como o nenê olhava quando pessoas estranhas se aproximavam e quando um objeto desconhecido estava por perto.
Ainda mais encantador Emiliano tornou-se quando virou animalzinho sob duas patas. Corria feito um leopardo pela fazenda, tão rápido que nem mesmo os mais hábeis peões davam conta de pegá-lo quando a madrinha, quase louca de preocupação, o pedia. Subia nas árvores feito um “monito” e acertava, de brincadeira, frutinhas em todos que passavam. E era fascinado pelos indígenas que ali trabalhavam, especialmente por um que manejava arco e flecha com habilidade ímpar.
Foi quando, no aniversário de cinco anos, o pequeno Emiliano pediu de presente um arco e uma aljava de flechas. Os pais e padrinhos estranharam aquele pedido, afinal, por que uma criança iria querer aprender a manejar algo tão perigoso? No fim, lhe deram. De brinquedo. Explicaram ao pequeno que ele, no momento, deveria manejar coisas sem ponta porque as cortantes podiam machucá-lo.
O que sucedeu em seguida foi surpreendente. O menino, apenas observando, já manejava o arco com maestria quase adulta. E possuía uma inacreditavelmente acurada pontaria, mesmo as flechas sendo de mentira. Não que o índio não quisesse ensiná-lo, mas achava melhor não travar aproximação, afinal, ele era afilhado dos patrões. Admitia, porém, que o pequeno Azurra tinha muito talento.
Os anos novamente foram passando. Emiliano mostrava um talento cada vez maior para o arco e flecha. E uma pontaria cada vez mais mortalmente acurada. Não raro alguns dos peões reclamavam que o menino, só de diabrura, acertava seus chapéus. Os padrinhos respondiam que eles não tinham nada para se preocupar, pois o rapazinho não fazia por mal.
O rapazinho, por sua vez, tornou-se um moço muito bonito anos após. Azurra tinha dezessete anos quando o padrinho, após anos de ensinos, lhe deu um revólver. Na opinião do fazendeiro, homem tinha que aprender a manejar armas de fogo. Não negava, porém, que o arco e a flecha eram úteis à longa distância. O agora jovem Emiliano andava armado tanto com o revólver quanto com seu inseparável arco de madeira e suas afiadíssimas flechas, cuidadosamente organizadas, em uma aljava presa às suas roupas.
Embora ele admitisse que atirava bem, o jovem preferia mil vezes seu arco e flechas. E ele estava certo.
Anos depois, com Emiliano já tendo 21 anos, o padrinho, por razões políticas, sofrera um atentado grave. Quase tinha morrido. Azurra, furioso com tal ousadia, mostraria aos responsáveis que ninguém se metia com Adolfo Villa Real.
O terror havia tomado conta do local algum tempo depois. Pelo menos cinco homens haviam aparecido mortos. Todos com flechas cravadas pelas costas ou no peito. Todo mundo tinha certeza de que o afilhado de Adolfo era o assassino. Afinal, quem mais era capaz de atirar flechas a distâncias absurdas com tal acuidade? O fazendeiro também político impressionou-se com a total frieza e a excelente pontaria do afilhado. Naquele momento, teve certeza de que se Emiliano Azurra soubesse usar seu talento, seria um excelente herdeiro financeiro e político.
Adolfo, já bastante envelhecido aquela altura, logo tratou de acordar o casamento do afilhado com a filha de seu maior aliado, Francisco “Paco” García y Omar. A moça chamava-se Julieta García y Omar e quase de imediato combinou com o jeito de Emiliano embora não o amasse. Ele também não a amava. Os dois casaram única e exclusivamente para manter a união política dos fazendeiros. Acabaram criando estranha amizade.
Julieta, assim como Emiliano, também havia estudado. Ambos eram cultos e sabiam conversar sobre qualquer assunto. No entanto, a jovem não gostava nada do fato de que o marido guardava o arco e as flechas pendurados em uma parede na sala. Ela tinha a certeza de que aquilo era como um aviso. Quem sabe uma ameaça. Afinal, ela era mulher em época muito complicada para as mesmas. Entretanto, ela não se importava muito. Era uma bruxa. Das poderosas. Se Azurra tentasse algo contra ela, teria uma desagradável surpresa.
Contudo, as coisas ficaram um pouco estranhas quando eles finalmente tiveram um herdeiro. Aliás, uma herdeira. Julia, batizada em homenagem à madrinha recém-falecida. Emiliano Azurra havia descoberto o segredo da esposa. Como? Ninguém sabia. Quem pensou que ele a mataria ou a intimidaria, estava bem enganado. Decidiu fazer um acordo: o ajudava nas tramas políticas com seus poderes e ele conseguiria os ingredientes para suas poções. Afinal, os peões sempre pediam ajuda das receitas milagrosas de Dona Azurra. Sem elas não viviam.
Julieta aceitou, desde que ele continuasse um bom marido, tratando-a bem e fosse um bom pai para Julia. Não que ela concordasse com a ideologia dele, mas, do que adiantava não fazê-lo? Políticos eram todos iguais, no fim das contas. Eram humanos, afinal.
Emiliano nunca pôde reclamar da esposa. E ao contrário de outros maridos, nunca a maltratou ou intimidou. Ela administrava bem os criados e a fazenda. Era uma excelente mãe. Apesar de que ele não gostava do fato de Julia ter nascido com poderes. Isso, porém, não era relevante, pelo menos não enquanto a filha fosse criança. Ele tinha que pensar mesmo era quando a menina virasse moça. Julia tinha um temperamento muito parecido com o dele mesmo que nunca mostrasse.
Mais tempo passou. Julia tornou-se uma moça muito bonita. A mãe, apesar da idade, continuava tão bela quanto no dia em que casara com Azurra. Emiliano, por sua vez, tinha ótima aparência para quem estava passado dos quarenta. O bigode e cabelos sempre bem aparados mostravam a incomum elegância para um homem que sempre vivera em fazenda. O físico sempre mantido magro era fruto de muitas cavalgadas e caminhadas, além das práticas com suas inesperáveis flechas e arco. Com os quais ele matava desafetos e inimigos, afinal, defuntos sempre saíam mais baratos.
Os habitantes da cidade sabiam que toda a vez que uma flecha atingia o obelisco do centro, era sinal de que ele estava chegando. Ninguém ousava falar em voz alta contra o mesmo. Sabiam todos que embora ele parecesse a mais bondosa das pessoas, de bom nada tinha. Quem se metesse a besta recebia uma flecha no coração, pulmão ou costas. Nem mesmo as autoridades eram capazes de contê-lo, pois ele era a liderança política do local junto do ainda vivo García y Omar.
Dizem, no entanto: não há mal que sempre dure. Aquele estava perto do fim. Francisco García y Omar morreu misteriosamente em uma tarde invernal. A causa mortis não havia sido esclarecida. Ele simplesmente findou durante o sono, sem dar sinais de estar doente ou coisa parecida. Os médicos locais, porém, estranharam duas coisas: a arcada dentária apresentava uma estranha alteração nos colmilhos e molares e inacreditáveis marcas vermelhas fortes espalhavam-se pelo corpo. Seria alguma doença desconhecida?
A morte repentina do aliado deixara Emiliano Azurra em maus lençóis. Novas lideranças estavam muito próximas de vencer as próximas eleições. E o povo bem que andava gostando daquela nova gente. Isso, porém, não ia ficar assim. Se eles queriam o poder, iam ter de escapar de suas flechas. E dificilmente ele errava o alvo.
Ele não imaginou, porém, que em uma de suas investidas para lidar com os inimigos logo após a morte de García y Omar, tinha ferido o rapaz por quem Julia se apaixonara. O moço em questão era filho de um dos opositores. A jovem Julia Azurra nunca tinha concordado com nenhuma das posições do pai. Achava injusto o modo como ele lidava com as coisas. Ninguém era obrigado a engolir sapos só porque ele queria manter o poder. As coisas agora tinham realmente chegado a um ponto insustentável. O rapaz que ela amava tinha quase morrido tentando salvar o pai. Um homem, na opinião dela, muito melhor e mais justo que Azurra. Julieta, por sua vez, não compartilhava da mesma opinião.
Tal acontecimento tinha se tornado a primeira vez que Emiliano Azurra não acertara um alvo com suas flechas. O fazendeiro estava furioso. Estava determinado a acabar com aquele homem e até mesmo com o atrevido filho dele que sobrevivera a uma flechada nas costelas.
Pai e filho, por sua vez, não iriam usar o mesmo método de Emiliano. Não iriam chegar tão baixo. Iriam lutar à sua maneira: com as atitudes e as palavras. Só torciam para ficarem vivos enquanto isso. Eles nunca imaginariam até onde Julia seria capaz de chegar para manter seu amado a salvo.
Julieta, em uma noite, tinha saído para sua cabana de cozimento, onde fazia suas poções e unguentos para ajudar os serviçais da fazenda. Emiliano tinha ficado em casa, planejando como mataria Alberto Morales e seu filho Manuel. Julia, a seu turno, tinha certeza do que o pai planejava. O que estava próxima de fazer custaria a ela muito caro, mas, valeria a pena. Era o único jeito de aquele abuso acabar. Ninguém tinha o direito de tirar vidas só porque havia discordâncias ou de permitir injustiças só para manter acordos. O destino sempre devolvia o mal causado. Ela também o receberia, mas, se pudesse ver seu amor vivo, até mesmo a cadeia seria confortável.
A jovem chegara silenciosamente ao quarto dos pais portando um dos punhais de feitiçaria da mãe. O pai encontrava-se afiando uma flecha. Emiliano mal pôde virar-se ao sentir a primeira das quinze punhaladas. As outras vieram com tal rapidez que o fazendeiro mal pôde se defender, horrorizado ao ver a filha suja com seu sangue. Em agonia, estirado ao chão, perguntou-se porque ela tinha feito tal barbaridade. Ela apenas o olhou com uma tristeza de cortar o coração. Uma lágrima escorreu daqueles lindos orbes verdes. Respondeu sem nada dizer que não podia permitir que ele continuasse abusando das pessoas. Preferia ser presa a ver inocentes sofrendo.
A esposa logo chegara ao ouvir os gritos do marido pela dor das punhaladas. Ficou igualmente horrorizada ao ver a filha toda sangrenta. O punhal ainda estava nas mãos igualmente manchadas com o sangue paterno. Que logo lhe foi tomado pela furiosa mãe pondo-a para fora do quarto dizendo que pelo amor de Deus fosse banhar-se. A bruxa logo tratou de tentar salvar o marido. Usou um unguento de cura feito horas antes. Julia estava certa de que o pai não sobreviveria. Caso sobrevivesse, porém, faria de novo. E se preciso fosse, mataria a própria mãe. Para resguardar a vida de seu amado, assassinaria o mundo todo.
Isso se ela não tivesse recebido a visita dele. Ele, possuindo o poder de ver o futuro, sabia o feito de Julia e culpava-se por não ter podido impedir tão hediondo crime em razão de que não sabia quando ocorreria. O rapaz aconselhou a jovem a sair dali com ele. Os dois dariam um jeito na situação caso Emiliano sobrevivesse. Ele apenas esperava que isso acontecesse, pois estava certo de que Julieta não hesitaria em entregar à filha às autoridades caso o marido morresse. Aquela mulher era traiçoeira, uma víbora. Julia era como era por ter passado a vida testemunhando as tramoias dos pais. E fizera o pior porque não mais suportou ver tais coisas.
Julieta García y Omar de Azurra até gostava de Manuel. Menos mal que ele havia aparecido, senão, muito provavelmente Julia tentaria matá-la para impedi-la de salvar Emiliano, mortalmente pálido após perder tanto sangue. No entanto, estava vivo após receber no corpo uma boa dose dos unguentos de cura feitos pela esposa. A bruxa, porém, não sabia quanto tempo conseguiria mantê-lo assim. Os ferimentos tinham sido muito graves. As lacerações eram feias demais até mesmo para ela.
Por Deus, como Julia tinha conseguido aquele punhal? Não era possível que ela soubesse o local onde guardava seus elementos de feitiçaria. Jamais havia permitido que a filha usasse de suas coisas. Pelo menos não até ter controle suficiente sobre suas habilidades e bom uso das mesmas. Entretanto, a jovem tinha sério descontrole de seus poderes e ainda precisava aprender muito fazendo poções, mas em compensação seu poder se equiparava seriamente ao dela.
Naquela noite terrível, algo ainda pior iria acontecer. O relógio soou as doze badaladas da meia-noite. Todos dormiam, exceto o padre, que fazia uma leitura do Evangelho. Este ouviu passos. Foi à janela averiguar. Um homem, na visão do religioso, totalmente “borracho”, ia em direção à estrada. O mesmo voltou-se à sua leitura sem imaginar o que acontecia e ia acontecer na fazenda de Emiliano Azurra.
Pelo menos uma hora se foi até o homem visto pelo padre local chegar à fazenda. Ele, contudo, de comum não tinha nada. Tinha uma aparência que podia ser chamada quase de hedionda tamanha a feiura. Caminhava em profunda agonia, como sentindo a Morte respirando em seu pescoço. Tinha de transmitir seu poder a alguém antes que fosse embora de vez daquele mundo. Era um exemplar único de criatura. O único dos Vampiros Ancestrais a possuir o sangue dos dragões correndo dentro de si. Ganon.
Entretanto, ao conseguir manter o “Juízo Final” selado em sua tumba de gelo no Polo Sul, recebeu um mortal ferimento que nem mesmo o “Rei Vampiro” conseguiria suportar. Entrou na casa escura. Podia sentir a fraca pulsação de um homem em agonia e as batidas nervosas de uma mulher em expectativa. Subiu ao quarto onde o casal se encontrava.
Julieta gritou ao vê-lo. Por tudo que lhe era sagrado, como ele chegara ali? Aliás, o que aquela criatura ali fazia? A bruxa colocou-se à frente do marido agonizante implorando para não os matar. Ganon a afastou delicadamente. Rasgou o próprio peito com as unhas, permitindo que seu sangue negro curasse os ferimentos de Emiliano. O fazendeiro acordou cinco minutos depois, quase berrando ao ver o homem em pé com os órgãos internos expostos. O berro saiu com tudo quando ele fechou o ferimento. Foi silenciado ao ser agarrado e violentamente mordido no pescoço.
A esposa nem ao menos podia se mexer, tamanho o pânico sentido. Apenas dois minutos depois, Azurra encontrava-se em nova agonia. Substituída por um estranho alívio ao ver-se sendo fartamente alimentado pelo sangue que antes vira saindo dos órgãos internos da criatura. De repente, contudo, o fazendeiro teve a primeira de muitas convulsões, que o sacudiam como se fosse um saco de pancada brutalmente golpeado. Berrava de dor enquanto Ganon dava um último suspiro antes de transformar-se em um punhado de cinzas. E Julieta soltou um último e horrendo grito antes de seu peito explodir de dentro para fora. Ela morrera literalmente de pânico.
Era o que muitas vezes ocorria quando a bruxa era exposta a um sentimento extremo de medo. Naquele caso, porém, a visão de Ganon a deixara naquele estado. Quem via pessoalmente aquele Ancestral dificilmente vivia para contar a história. O poderoso vampiro conseguia tal façanha mesmo não querendo. Sua horrível aparência draconiana, quase demoníaca, era a causadora de tais sentimentos. Agora não mais.
As convulsões pararam. Emiliano estava atirado ao chão. Embora estivesse em lastimável estado, tinha testemunhado a morte daquela criatura e da esposa, ali estirada com o peito explodido. Havia sangue por todo o lado, como se alguém tivesse aberto Julieta com um facão de peixes. Azurra olhou-se. As unhas tinham crescido pelo menos cinco centímetros. Sua visão misturava vermelho, preto e dourado. Seu coração estava parado. Como assim ele estava morto? Era possível ele estar andando naquele estado? O sangue daquela coisa havia feito isso com ele? A resposta para todas aquelas perguntas era sim. Havia se tornado uma criatura morta-viva.
A visão do sangue logo o despertou para a realidade de sua situação. Era daquilo que precisava. Passou os dedos pelo sangue ainda fresco de Julieta. Lambeu-os, sentindo o gosto agora doce daquele líquido. A língua, além do vermelho, sentiu o novo tamanho dos incisivos.
Repentinamente, uma gargalhada explodiu em sua garganta. Era mais poderoso do que nunca pensou em ser. Finalmente seus adversários teriam os fins que mereciam. Iria beber gota a gota do sangue deles. Depois, transformaria cada habitante dali em uma criatura como ele. Dominaria aquele local. Depois, o país inteiro. Criaria um reino de completa escuridão. Teria o poder que tanto almejava. Faria seus inimigos se ajoelharem diante dele. Depois, cortaria suas cabeças e usaria seus crânios como taças. Primeiro, no entanto, precisava de alimento. Infelizmente Julieta já estava morta. Lamentou-se por ela. Tinha sido excelente esposa e mãe.
Julia, contudo, o havia apunhalado cruelmente. Perguntou-se o que tinha feito para merecer tal traição. Estava furioso. Queria matá-la com requintes cruéis. Foi quando uma mulher apareceu sem aviso...
- Nada disso vale a pena, Emiliano Azurra. Pense bem no que a levou a isso tudo.
Azurra via uma vítima fresquinha em sua frente. Uma mulher de pele clara e escuros cabelos que se encontravam presos no alto da cabeça por um coque complementado por duas tranças. O vestido tão preto quanto a melena cobria o corpo todo. O agora vampiro imaginou como seria ela sem a vestimenta. A língua estalava no sorriso macabro que ele abria: - Eu tenho fome. Posso sugar seu pescoço até a morte. Quero ver se pode comigo agora.
A resposta foi das mais inacreditáveis. O vampiro se viu sendo brutalmente atirado contra a parede, quase defenestrado. Percebeu logo que ela era uma bruxa assim como o foi sua mulher. Foi quando ela disse...
- Tome cuidado com o que diz, Emiliano. Posso matá-lo aqui mesmo. Ganon, porpem, te deu um poder que não pode ser ignorado. Terei que ensiná-lo a usar.
- Por que eu deveria te ouvir? Eu sou poderoso. Posso subjugar a todos que eu quiser. Ter o poder que me está sendo negado sendo que eu sempre cuidei bem desse lugar! – exclamou ele furioso, quase rugindo.
- Se o que você faz aqui é cuidar bem, então o senhor está fazendo isso muito errado – disse a bruxa olhando-o duramente para depois dizer com fúria: - Acha mesmo que intimidar pessoas, mandar e desmandar, permitir injustiças, negar recursos a quem mais necessita em nome dos seus interesses é certo?! Você é uma criatura odiosa! Todos aqui querem que você suma! Nem mesmo sua filha foi capaz de suportá-lo!
- Cala a boca, sua... rameira! – ele quase chorava ao lembrar-se das lágrimas de Julia após apunhalá-lo. Aquele pranto era difícil de esquecer. A expressão lamuriosa da jovem ficaria cravada em sua memória pela eternidade. Por razão desconhecida, sentimentos muito estranhos afloraram dentro dele. De repente, percebeu que as pessoas daquele local realmente não gostavam dele. Sempre se afastavam quando ele chegava. Lembrou-se de que embora tivesse aliados políticos, não tinha realmente amigos. E mesmo eles poderiam algum dia querer vê-lo pelas costas. Costumava ser assim quando se tratava de política, ele sabia. Constantemente sentia-se só embora Julieta fosse uma excelente esposa e amiga.
Agora, porém, ela morrera. E Julia, sua filha, tinha desaparecido. De repente, uma profunda solidão tomou seu coração morto. Ajoelhou-se. Chorou. Escondeu o rosto sob as mãos para que a mulher não o visse naquele estado.
Na visão de Felicia Morresi, Emiliano Azurra parecia uma estátua de um anjo lamentador.
Quantos como ele haviam percebido tarde demais os erros cometidos. Quantos como ele haviam escolhido morrer na luz do dia ao invés de encará-los. E mais quantos como ele ela havia matado porque se recusavam a enxergar sua soberba e maldade e a livrar-se das mesmas. Esperava poder ajudá-lo. Precisava, entretanto, da aceitação dele em ser auxiliado naquele caminho tortuoso que a eternidade podia ser caso mal trilhado.
Observou as cinzas de Ganon e o cadáver sangrento de Julieta. Não era de se admirar que Emiliano Azurra tivesse pensado tamanhas insanidades ao perceber o poder ganho. Qualquer outro com uma mente tão fraca teria feito bem pior. Azurra continuava soluçando tristemente, as mãos agora cobertas de sangue advindo das lágrimas agora atravessando os espaços dos dedos. Sentia-se fraco e inútil tal qual uma criança que não tinha ninguém para cuidá-la. Foi desperto de seu choro pelo grito choroso de um homem...
- Minha Julieta! Minha menina! – García y Omar ali estava segurando a filha morta nos braços, a dor estampando o rosto tal qual um ferro em brasa marcava a pele de um boi.
Emiliano tomou tal susto que por pouco não se jogou pela janela, pois ainda estava próximo dela. Assustou-se como nunca o fizera ao constatar que era mesmo seu aliado falecido. No entanto, ele parecia bem mais jovem. As mãos tinham uma inacreditável cobertura de pelos grossos e escuros, além das unhas incrivelmente longas e pontudas. O rosto era exatamente como se lembrava, mas tinha rejuvenescido vários anos, porém, era pálido e possuía os mesmos olhos vermelhos que os seus. Os incisivos eram agora afiados e pelo menos dois molares também eram pontudos e grandes.
“Paco” olhou furiosamente Azurra. Felicia lhe disse apontando as cinzas que ainda possuíam alguns traços do que antes era o poderoso ser: - A visão de Ganon, o Draconiano causou isso. O susto explodiu o coração de Julieta. Sinto muito, señor García y Omar.
- Ganon, o Draconiano? – os dois vampiros perguntaram ao mesmo tempo. Olhavam-se surpresos e temerosos.
- O único dos Ancestrais a possuir o poder dos dragões. Agora, Emiliano Azurra possui esse poder assim como Francisco García y Omar tem o dos demônios – disse a bruxa olhando muito seriamente os dois como se os avisasse de que sofreriam as consequências caso tentassem fazer algo indevido.
- Você também...? – Azurra percebia uma expressão terrivelmente abatida em Paco.
García y Omar assentiu com tristeza e mais triste ainda segurava nos braços sua pobre filha falecida. Por que o destino lhe fora tão cruel tirando-lhe tudo o que mais amava? Julieta morta e sua neta Julia desaparecida. A mesma coisa perguntava Emiliano Azurra. Os dois agora tudo dariam para voltar atrás e desfazer os erros cometidos. O que tinham feito com suas vidas, afinal? Olharam para Felicia Morresi. Não sabiam ainda seu nome, mas queriam sua ajuda. Os olhos rubros de ambos imploravam por auxílio. Por um rumo.
A bruxa viu-se acolhendo ambos em seus braços como se fossem seus filhos. De certo modo, eles eram. Os adotara como seus quando os mestres que deveriam cuidá-los os deixaram sozinhos. Os cuidaria até amadurecerem o suficiente para seguir sua própria jornada.
...
A localidade e a fazenda, no dia seguinte, horrorizaram-se com o ocorrido da noite anterior. A tentativa de homicídio contra Emiliano Azurra agora era de conhecimento público. Os habitantes estavam horrorizados com o fato de a jovem Julia tentar assassinar o próprio pai. E mais ainda ficaram quando as autoridades não acharam sinal dela nem do jovem Manuel Morales. Alberto, o pai do rapaz, pôs as mãos na cabeça ao saber do terrível crime e da fuga do filho com a jovem homicida. Perguntou-se que tipo de coisa o destino reservava para o agora casal. Questionou-se até onde o amor da senhorita pelo seu filho tinha sido capaz de ir. Rezou pedindo ao Senhor que a coisa morando dentro de seu filho não despertasse.
A consternação foi geral quando souberam do outro ocorrido. O falecimento repentino da esposa de Azurra, Julieta García y Omar, chocou a todos. Todos achavam que a bela e ainda jovem senhora tinha falecido de causas naturais enquanto dormia. Apenas os vampiros e a bruxa sabiam a verdadeira causa mortis. O corpo tinha sido “reformado” por Felicia para que a morte parecesse natural e assim ninguém perguntasse sobre.
Pela primeira vez desde o falecimento dos pais e padrinhos, Emiliano chorou a perda de alguém. Julieta fora a melhor esposa e mãe que alguém poderia ter concebido embora nunca a tivesse amado de verdade. Tinha sido apenas seu amigo e aliado. Ela retribuíra. Sempre o ajudou. E nunca negou ajuda a ninguém, nem mesmo quando a tarefa parecia impossível. Perguntava o porquê de ela ter morrido de uma forma tão cruel. Questionava-se sobre o motivo de Ganon tê-lo transformado naquela coisa que ele se tornara. As lágrimas corriam-lhe soltas no rosto.
Já Paco García y Omar acarinhava tristemente o cabelo escuro da filha enquanto escolhia um lindo vestido para sepultá-la junto da mãe no cemitério local. Pegou um branco de detalhes em rosado e o mostrou a Felicia: - Ela sempre usava esse quando estava feliz.
- É melhor repousarem. Paco, vá para o porão. Emiliano, suba para o seu quarto e finja que ainda está gravemente ferido. Cuidarei de tudo por aqui – disse ela suspirando para depois emendar um aviso: - As janelas estão seladas, Azurra. O dia não vai afetá-lo.
- Então nunca mais poderei tocar a luz solar? – o vampiro recém-nascido queria pelo menos algo bom saindo daquilo.
- Não. Vampiros só andam à noite, Emiliano. Acho melhor você começar a aceitar esses detalhes – respondeu ela no mesmo tom.
Paco e Azurra já haviam se alimentado de animais trazidos por Felicia. Por algumas horas estariam satisfeitos.
A incrível e milagrosa sobrevivência de Emiliano Azurra as quinze punhaladas desferidas pela filha tornara-se quase imediatamente uma lenda. O funeral de Julieta havia parado a localidade, lotando o cemitério. As autoridades ainda não tinham notícias de Julia e Manuel. Aquela semana após os horríveis ocorridos da noite do dia de Pentecostes havia passado tão rápido quanto um raio caindo do céu. E na madrugada antes do raiar da nova semana, uma flecha percorreu o céu da localidade, novamente cravando-se no velho obelisco de madeira que ainda possuía as flechas anteriores. Um bilhete cravava-se na mesma, com uma única palavra:
“Adeus”.
O local, agora com nova liderança política e talvez um raio de esperança, espantou-se com aquilo. Para onde teria ido? O que faria com sua vida? Teria se tornado alguém melhor? Estaria em busca da filha desaparecida? E outras perguntas ainda tomavam conta do local: quem era a mulher misteriosa que havia salvado Emiliano da morte certa? Como ela conseguira salvá-lo mesmo as chances sendo praticamente zero de sucesso? Porque Azurra não mais aparecera durante o dia antes de sumir? O que havia matado Francisco García y Omar?
Aquelas perguntas jamais teriam resposta.
O passar dos anos criaria uma enorme lenda em volta do nome de Emiliano Azurra. Muitas teorias, jamais comprovadas, criaram-se. E tantas histórias seriam contadas sobre o excelente arqueiro que era e sobre como suas flechas, mesmo a inacreditáveis distâncias, chegavam a seus alvos. O obelisco local continuaria exatamente como naquela época, com as armas ainda cravadas nele.
Os cavalos haviam sido trocados por carros, motos e aviões. As cartas, por mensagens de celular e internet. Os longos e fechados vestidos por minissaias, saltos altos e barrigas à mostra. Os ternos antiquados e trajes típicos por camisetas, bermudas e calças comuns.
O protagonista de tão trágica sina, porém, não havia sido tocado pelo tempo ou pela morte.
A cada noite que despertava de seu repouso diurno, escrevia uma nova página de sua eternidade.
Uma história sem fim.