Espero que apreciem, .
El día que me muerdas (Crossover com Kaori (criação de Giulia Moon))
1. Dançando em Buenos Aires
Os ingressos para aquela noite, naquele cabaré elegante, se esgotaram em menos de duas horas. Pessoas, a maioria homens de alto poder aquisitivo, pediam lugares para a próxima. Buenos Aires encontrava-se em verdadeiro furor em razão da dançarina fazendo a cabeça de meio mundo com seus movimentos incrivelmente sensuais.1. Dançando em Buenos Aires
Homens queriam oferecer-lhe o universo em troca de uma noite.
Algumas mulheres queriam copiar o belíssimo e longo cabelo preto igual o ébano.
Outras queriam saber do responsável pela “infame” tatuagem de dragão ricamente desenhada na coxa esquerda, desejando copiá-la.
Outras, mais velhas e muito conservadoras, faziam incontáveis protestos contra aquilo que consideravam “um atentado aos hábitos e bons costumes”. Apelavam até mesmo ao presidente Farrell para tirar aquela rapariga de circulação. Achavam absurdo uma moça tão jovem dançar daquele jeito horrendamente obsceno. Pensavam o mesmo do figurino que não deixava quase nada para a imaginação. E também a monstruosa tatuagem vermelha estampada na perna. Imagine se aquilo acabasse virando moda? Seria uma confusão infernal. Já lhes bastava verem as moças fumando cada vez mais e fazendo outras coisas que não mereciam sequer comentário.
A senhorita em questão fora descoberta por ninguém menos que o célebre Discepolín, apelido pelo qual Enrique Santos Discépolo era conhecido. Segundo ele, a bela senhorita era uma japonesinha de encher os olhos e quem a visse dificilmente a esqueceria. E aquele perfume naturalmente delicioso tinha feito a cabeça dele girar quase uma volta completa. Descobriu-a dançando em um cabaré decadente próximo às docas e de lá a trouxera para dançar nos grandes salões da cidade. Tinha esperança de vê-la dançar tango em uma de suas peças, mas o estilo dela, uma exótica mistura de ritmos japoneses, árabes e africanos tribais, deixou-o fascinado.
E decerto deixaria a muitos outros também, pensou ele enquanto esperava Kaori terminar de arrumar-se para a apresentação. Quando a viu sair do camarim, surpreendeu-se com o visual um tanto austero dela...
- O que você planeja?
- Surpresa – a voz adorável de rouxinol coçou silábica e levemente os ouvidos de Discépolo.
- Como sempre, você gosta de brincar com os sentidos masculinos – riu alguém que vinha de fora.
- ‘Buenas noches, señor Togashi’ – Enrique educadamente disse ao vê-lo. E observou o delicado kimono vermelho com estampados ricamente desenhados que Kaori vestia. Além do negro cabelo preso à moda oriental.
Togashi era o representante de Kaori. Primeiro nome: Kaito. Como ela, ele era claro e levemente pálido. Era demasiado alto para o padrão japonês. Pelo menos se comparado com o menos de 1,60 m da senhorita. Atlético sem ser um armário. Tinha cabelos e olhos escuros como os dela. Vestia-se da forma mais portenha possível como forma de adaptar-se a uma terra que não lhe pertencia. Falava espanhol com algo de sotaque, o que fascinava a muitas senhoritas casadoiras e até as chamadas mariposas.
- Esqueceu sua flor no cabelo, Kaori-san – disse uma senhorita saída do camarim.
- Boa noite, ‘pequeña’ Tomoyo – Enrique cumprimentou-a alegremente.
Tomoyo Tamaguchi era a responsável pelos figurinos de Kaori. Também fazia sua maquiagem embora a bela bailarina não precisasse muito. Raramente fazia penteados elaborados nela, pois tinha a opinião de que o cabelo solto e longo causava maior impacto. Como a dama perfumada, era pequena e magra embora tivesse um pouco mais de altura. Não era tão linda quanto a dançarina, mas tinha seus encantos.
- Quase na hora, Kaori – Tamaguchi sorriu colocando a flor no cabelo da dançarina. A mesma respondeu: - Arigatô.
Discépolo estava ansioso além do normal para aquela apresentação. Tinha a certeza do sucesso. O público da outra vez, em uma apresentação feita na festa de um grande amigo, pelo menos o que havia gostado, tinha dito maravilhas dela. O problema, porém, era como o de agora reagiria. Kaori estava coberta da cabeça aos pés. Isso não era algo que ele esperava. No entanto, ela disse sobre aquilo ser uma surpresa. Qual seria seu plano para aquela noite? Achou melhor esperar e ver o que ela faria.
Minutos depois, o apresentador anunciou “a exótica e escultural dama do Oriente, Kaori”, com ela sendo recebida por incontáveis aplausos. Embora os olhares estivessem estranhando a situação, considerando os comentários anteriores. Entretanto, a estranheza logo foi substituída pela expectativa, pois talvez...
De repente, delicada música, tocada por instrumentistas japoneses com biwas*, ecoou pelo salão. Seguiram-se belíssimos movimentos. A dança denominava-se “Odori”. O corpinho esguio movimentava-se rigorosamente de acordo com o ritmo dos instrumentos. O perfume daquele corpo evocava um exótico ambiente desconhecido da grande maioria. Inclusive para Enrique Discépolo, que não tirava os olhos dela nem mesmo com incontáveis passantes dando-lhe vigorosas trombadas. Olhares hipnotizados pareciam ter esquecido o que ali faziam, quando...
A música oriental parou. Seguiram-se tambores delicadamente batidos enquanto um laço se desfazia no kimono de uma Kaori agora sentada. Uma cascata de ébano cobriu as costas enquanto ela delicadamente colocava-se ereta. O tecido ia ao chão enquanto uma música mais alta e ritmada era acompanhada por um sensual movimento de virada. Foi nesse momento que o público viu, agora em pé, a maravilha descoberta por Discepolín. Uma linda e jovem mulher de corpo sedutor, usando apenas um enfeitado biquíni com uma cobertura de tecido atrás, que ia aos tornozelos. Os longos cabelos pareciam dançar junto dos belos quadris. E aquela vermelha tatuagem de dragão na coxa esquerda? Decididamente, não era coisa de Deus.
Muito menos era o que se seguiu. Kaori movimentava-se de acordo com os animados tambores, como se ela e a orquestra fossem um único e fascinante ente. Tal espetáculo gerou inacreditável algazarra no salão. Os músicos só não perderam o fio da meada por milagre enquanto ela não parecia importar-se com a loucura vocal. Continuava seu exótico bailado como se o mundo lá fora inexistisse. Em alguns momentos, os quadris balançavam de modo frenético, causando um furor vocal ainda maior no salão. Em outros, o movimento deles era mais delicado. E as pernas faziam um pouco mais o trabalho de seguir o ritmo da música.
Quando o “finale” veio das cordas instrumentais, um escorregadio e bem executado movimento pôs a dançarina ao chão, encerrando gloriosamente o show. E uma enorme chuva de aplausos ecoou pelo salão, deixando Kaori com grande sorriso. Dando a mão a Enrique, levantou-se e disse em excelente espanhol: - ‘Gracias a todos ustedes. Y muchas gracias al adorable señor Discépolo por darme la oportunidad de bailar en esta encantadora ciudad.’
As palmas ficaram ainda mais barulhentas e estrondosas. E a algazarra anterior era agora substituída por todo o tipo de elogios e comentários. Dos mais belamente elaborados até os mais vulgares, estes últimos causados por jovens consideravelmente embriagados. O poeta ficou enojado com algumas das coisas que ouviu enquanto ela ria delicada e sonoramente sem importar-se com eles. Importava-se apenas com a figura mascarada que a observava de um canto muito discreto do salão. Embora se movimentasse vigorosamente de um lado a outro durante sua apresentação, não tirou seu olhar do dele. Sabia que era um homem. O perfume forte e vigoroso não deixava mentir.
E aqueles olhos. Pelos deuses, aquele olhar. Era muito reconhecível embora somente gente muito perspicaz fosse realmente capaz disso. Como podia ser? Kaori conhecia de cima a baixo a história daquele falecimento, pois Takezo colecionava todo o tipo de coisa sobre tango. A “discoteca” dele daria inveja até mesmo ao mais fanático dos argentinos. Incluíam-se até mesmo relíquias dos anos dez, quando o samurai fizera amizade com a Orquestra Típica Crioula de Vicente Greco. Inclusive ele correspondia-se com os irmãos Greco, agora vampiros discípulos do célebre Yatagarasu. A vampira riu ao lembrar-se das cartas cheias de histórias engraçadas.
Saiu do palco sob ainda mais aplausos. Logo estava no camarim sendo cumprimentada por Togashi e Tomoyo, além de alguns amigos trazidos por Discépolo. Não se demorou naquela parte. Alegou que precisava ir para casa tomar um bom banho e descansar, pois o espetáculo a cansara. Os homens ali presentes encantaram-se com sua educação ao dizer aquilo. Especialmente em como ela docemente se desculpava por não poder estar na companhia de pessoas tão agradáveis. Enfim, saiu na companhia de seu empresário e maquiadora-figurinista após trocar-se. Parecia muito aliviada:
- Graças aos deuses me livrei daqueles amigos do Discépolo. Pensei que teria sugá-los até a morte. Que gente chata!
- Concordo. Pude sentir cada um deles disposto a apertar suas carnes se não estivéssemos por perto – disse Kaito injuriado.
- Quero sangue. Podemos caçar ou vamos andar feito moscas tontas? – Tamaguchi olhou-os séria.
- Sei onde podemos arranjar. O escritório legal não fica muito longe. Não apenas poderemos nos alimentar rápido, como também vocês poderão se divertir. Eu, no entanto, vou encontrar o homem mascarado da plateia – disse ela com um enorme sorriso.
Kaito e Tomoyo riram levemente. Os dois perguntaram mentalmente que ideia era aquela. Levou pouco mais de dez minutos até conseguirem seu alimento no local indicado. A pessoa que os vendera o sangue sorriu ao receber gordas notas de pesos. Ficou com troco por insistência de Kaori. Os três vampiros beberam todo o sangue em meia hora. Eram pelo menos alguns litros. Dez valiam quinhentos pesos. Custava tal preço porque aquele tipo de negócio ainda era difícil de fazer.
Kaori deixou os amigos em um bar de tango próximo de onde estavam antes. Quase imediatamente saiu em busca dele. O cheiro dele já não era detectável, mas ela lembrava. Onde ele poderia estar? Concentrou-se cerrando os olhos. O perfume outra vez se fez presente. Seguiu cuidadosamente o rastro, desejando que ele não fugisse. Andou delicada e rapidamente até encontrar um prédio bastante antigo em uma rua quase desabitada. Um local desses era estranho em uma cidade como Buenos Aires. Não era impossível, porém, pois o local tinha mesmo jeito de ser muito mais velho que a maioria dos prédios centrais. O rastro tinha outra vez se perdido. Entretanto, uma fraca luz no fim da rua indicou onde ela deveria ir.
A casa tinha dois andares e pelo número de janelas, pelo menos oito cômodos. Um único facho iluminador se via no andar de cima. Aproximou-se. Mesmo sabendo que não era bonito invadir casas, abriu a porta. A visão da vampira logo se acostumou ao total breu da sala. De repente, dois faróis vermelhos surgiram no alto da escada. Seguidos pela iluminação de um castiçal aceso em uma mesa próxima à escada...
- Vejo que você chegou até aqui, Dama Perfumada.
- Quero ver o que há por trás da sua máscara de Yin Yang. E quem sabe desvendar seus outros mistérios – respondeu ela sorrindo.
Ele vagarosamente desceu a escada. Tinha os pés descalços. Kaori enfim viu-o sem a máscara. Percebeu uma mecha branca no ébano daqueles cabelos. Abriu o mais radiante sorriso: - Você e a imortalidade combinam de uma forma perfeita. Nunca pensei que viveria para ver um momento desses.
Gardel era pouco mais de dez centímetros mais alto que a japonesa. Não era desconhecido que sua estatura era de menos de 1,70 embora a diferença fosse menos dois. Entretanto, ele era ainda mais bonito pessoalmente. As fotos definitivamente não faziam jus. Uma curta distância os separava. Afinal ele perguntou: - Guardará segredo?
- Eu sou uma moça muito egoísta, sabia? – ela riu para em seguida dar delicados passos de dança em redor dele. Parou atrás. Abraçou-o como para certificar-se de que ele não era apenas uma ilusão.
- Todo o vampiro tem algo de egoísta, inclusive eu – respondeu Gardel soltando algo parecido com uma leve risada. Tocou as mãos de Kaori: - Há algo, contudo, que nós dois dividimos: buscamos eternamente sangue e amor.
- E procuramos preservar parte daquilo que um dia nós fomos. Isso explica o porquê da sua máscara ter o desenho de um Yin Yang. Você procura manter o equilíbrio entre o homem belo e elegante e a fera que busca sangue – sussurrou ela soltando um pouco o peito dele e depois deslizando a mão esquerda pelo mesmo.
Ele nada respondeu. Apenas afastou-se dela. Virou-se para olhá-la. A japonesa usava um vestido vermelho bem decotado. E saltos que a deixavam pelo menos sete centímetros mais alta. O cabelo preso à moda portenha parecia deixá-la com um ar misterioso e sensual. Aquele sorriso era muito convidativo. O olhar dizia tudo o que ele precisava saber das intenções dela.
Ela, por sua vez, aproximou-se de novo. Olhou bem nos olhos dele. Sorriu como quem tivesse encontrado um tesouro. Tocou-o com suas delicadas mãozinhas. De repente, sorrisos foram trocados. Mãos e lábios se tocaram. Passos de dois seres caminharam escada acima. Tecidos foram deixados no caminho. Uma escrivaninha, uma poltrona, uma cama e a lua cheia testemunharam uma mordida dada no seio desnudo. E outra em retribuição, na base do pescoço. O mesmo quarteto inanimado testemunhou os corpos enroscados, os beijos trocados, as mordidas dadas e as carícias feitas. Até que a aurora apareceu anunciando que o dia a eles não pertencia. Com as cortinas cerradas, os dois juntos repousaram até a noite cair.
Quando outro anoitecer caiu na capital portenha, Kaori e Carlos despertaram. Trocaram um sorridente olhar. Ela disse por fim: - Foi minha melhor noite por aqui até hoje. Estou honrada por tê-lo tido como parte disso.
Ele respondeu com um sorriso curto: - Não pensei ser capaz de despertar o interesse de alguém claramente mais poderosa que eu.
- Oras, acho que quem decide esta parte sou eu – disse ela de modo misterioso enquanto ficava de quatro em uma provocativa pose. Seus lábios estavam perigosamente próximos aos dele, ali sentado.
Alguém de repente escancarou a porta. Kaori recuou tão rápido que quase caiu da cama. Era Janus, possivelmente um dos mais antigos e poderosos vampiros do mundo. Ela não imaginou que ele gostasse de aparecer tão de surpresa. E muito menos que ele tivesse o despudor de não se importar com a nudez alheia...
- Vejo que sua noite passada foi muito boa, meu bom menino.
- Já tinha alguns anos que eu não me sentia tão bem com uma mulher ao meu lado. Geralmente elas não me impressionam tanto quanto eu gostaria – disse ele observando seu mestre.
- É um jeito um pouco inesperado de conhecer alguém. O modo como o senhor abriu a porta me assustou. Achei que ia querer acabar comigo – Kaori ainda estava em choque.
- Não tenho razões para querer seu mal, bela senhorita. Eu aposto, no entanto, que você é alvo de muita gente. Ouvi falar que sua primeira performance para um grande público foi um absoluto sucesso. O salão estava lotado. E inclusive para daqui dois dias está quase superando a lotação do local. Parabéns pelo sucesso – Janus respondeu com um sorriso.
- Obrigada, senhor. Eu sei que sou duramente criticada por algumas senhoras “de bem” que desaprovam minha conduta. Não me importo desde que elas não venham me incomodar ou mandem policiais atrás de mim – ela respirou fundo para conter a possível fúria.
- Não se pode prever o comportamento humano, Kaori. Quem na realidade sabe o que se esconde por trás de senhoras com rostos pacíficos? – Janus parecia levemente vago nas palavras.
Gardel logo percebeu que o mestre estava dando-lhe um aviso: - Foi por isso que você veio aqui? Kaori está em perigo, não é?
- Como assim? – a vampira alternou seu olhar entre eles.
- Você está cada vez melhor em interpretar minhas maneiras, meu garoto – Janus suspirou impressionado com a rapidez dele em aprender.
- Por acaso estão planejando me prender por “atentado ao pudor”? – ela perguntou despreocupada. No fundo, porém, ela sabia: se Janus viera dar aviso daquela maneira, era porque algo ruim podia acontecer.
- Não sei exatamente quem foi, mas contratou um assassino para eliminá-la. Descobrirei, não se preocupe. Parece que uma das ditas “senhoras de bem” está disposta a ir até os extremos para manter o “status quo” – respondeu o Ancestral.
- É muito atrevimento isso. Coisa de gente louca – Gardel enfezou-se.
- Mesmo que essa pessoa envie todos os assassinos do mundo, lidarei com um por um sem piedade – respondeu ela firme.
- Sua resolução muito me alegra, senhorita Kaori. Gosto de pessoas determinadas, sejam homens ou mulheres – Janus riu levemente.
A japonesa embeveceu-se com o elogio. Colocou a mão sobre o rosto de Gardel: - Caça comigo esta noite? Eu não pretendo me livrar de você tão rápido assim. Sua companhia me faz uma vampira muito feliz.
- Só se você permitir que eu conduza parte da noite, afinal, eu a conheço como a palma das minhas mãos – respondeu Carlos com certa malícia.
- Seus desejos são ordens, meu francesinho – Kaori beijou-o com tal ferocidade que até Janus surpreendeu-se.
Gardel fingiu tomar fôlego após o beijo. O Ancestral riu como ninguém ao ver a claramente fingida cara de surpresa...
- A noite está correndo. Suponho que não vão sair nus por aí.
Os três riram muito. A japonesa e o “zorzal criollo” vestiram-se. Ela, com o mesmo vestido de ontem, o qual Janus havia trazido intacto e devidamente dobrado. Ele, com um elegante terno enfeitado por uma bela gravata cor de vinho. Estavam prontos em apenas alguns minutos.
E a partir do momento em que pisaram na rua, aproveitaram a noite em toda a sua plenitude.
O Terceiro Olho (Crossover com Cira, de Walter Tierno)
1. De quando o anjo vampiro conheceu a linda guerreira e bruxa
Alguém terminava de desenhar em uma prancheta. Era um retrato feminino em papel ofício A3. O desenhista sorria enquanto acariciava o papel com a ponta dos dedos. Sentia uma leve lágrima rubra rolando em sua face. Relembrava algum fato relacionado àquele desenho. Nem mesmo a melhor obra de arte poderia mostrar quão bonita era aquela criatura. 1. De quando o anjo vampiro conheceu a linda guerreira e bruxa
O nome, música das mais lindas aos seus apurados ouvidos.
Os lábios, um lindo e vermelho botão de rosa se abrindo na primavera.
O sorriso, único raiar de sol que ele queria mirar.
Os olhos, duas pérolas negras de beleza incomparável.
Aquele cabelo negro lustroso, em atrevida comparação, era mais bonito que todas as noites vistas por ele até então.
E aquele corpo? Nenhuma escultura grega ou renascentista seria capaz de atingir aquela perfeição.
A contemplação silenciosa foi interrompida por alguém trazendo uma garrafa: - Já que você não veio jantar com a gente, eu trouxe sua comida, Ángel.
- Gracias, Greco. Desculpe não ter ido, é que me envolvi em desenhar. Isso me distrai quando sinto tristeza – respondeu ele suspirando leve e baixo.
- Aposto minhas fichas que esse retrato tem a ver com algo que você viveu. Ela é muito bonita – disse o outro sorrindo para depois perguntar: - Ela tem, ou tinha um nome?
- Ela tem, Vicente – sorriu Ángel para depois levantar a prancheta como se contemplasse a própria beleza que só a natureza proporcionava aos olhos: - Cira.
- Que nome pouco comum esse – riu Greco de jeito esgarçado, que caracterizava sua risada sinfônica de vampiro. Falou sentando-se em um pufe preto: - Você me contaria como se envolveu com ela?
Geralmente, Ángel Villoldo não gostava de falar daquilo. Doera muito quando ela se fora sem se despedir. A verdade mesmo era que ainda doía. No entanto, resolveu contar aquela parte de sua vida post-mortem, de quando vivia isolado em um parque ermo em uma cidade encravada no sopé das montanhas andinas.
...
1989, Esquel, próximo à Cordilheira dos Andes...
Uma considerável fila aguardava frente a uma casa de dois andares próxima a um parque quase abandonado. Todos ali sabiam que o proprietário, na verdade locatário sem pagamento, só atendia quando a noite caía. Até mesmo gente de cidades próximas vinha procurando auxílio. Ángel Gregorio, a dita pessoa, era vidente. Dos bons quando a pessoa realmente precisava. Quem vinha com má intenção era chutado feito bola esportiva. Esse tipo de cena era incomum, mas quando ocorria, virava assunto por uma ou várias semanas.
Quem já vira a casa a descrevia como legítima morada de gente estranha. O local era bem arrumado, mas tinha algo sinistro. Não havia comida na geladeira e menos ainda água consumível. Todos perguntavam o que ele de fato comia, pois ninguém o via comprar suprimentos. Ele, porém, sempre ia ao açougue buscar carne fresca. Menos ainda ele socializava com alguém. Falava somente com os que vinham procurá-lo com toda a sorte de queixas: animais de estimação perdidos, pais alheios em relação à pensão alimentícia, mães desleixadas, devedores inadimplentes, maridos safados fugidos com a amante, sócios ladrões, filhos desaparecidos, gente desaparecida da ditadura terminada há seis anos e por aí ia.
À voz baixa, corriam rumores de que ele se alimentava de sangue. Ninguém, porém, ousava perguntar-lhe isso na cara. A expressão sempre séria metia medo na maioria. Não ajudava que ele tinha um bigode muito austero e antigo embora não muito grande. A roupa toda negra pontuada por um muito enrolado cachecol branco dava um ar estranho àquela figura. Uns poucos corajosos retribuíam aquela seriedade, mas apenas com os olhos porque ninguém sabia do que ele seria capaz se ficasse realmente zangado com alguma palavra mal dita. Outros muito mais medrosos diziam dele possuir a força de cem homens e agilidade de pantera.
Naquela noite, porém...
Todos foram atendidos com o máximo de atenção e precisão. Nenhum mal intencionado ousara aparecer. Se tomasse o risco, seria chutado de tal forma que sentiria a bunda ainda doendo mesmo a dor passando. A última da fila ainda esperou algum tempo. Chegou de moto perto do meio da tarde. Analisou cuidadosamente o local onde estava, pois era sua primeira vez ali. Ela sempre ouvira falar deles serem traiçoeiros e safados, coisa que às vezes ela comprovava. Pelo menos era o que a bruxa Guaracy, sua mãe já finada, havia dito algum tempo de antes de ser assassinada.
No entanto, aquele não era tão mau quanto ela pensou. Fazia o que podia para ajudar a todos e quando não podia, coisa bem difícil de ocorrer, pelo menos oferecia palavra de consolo.
Ele tinha menos de cem anos, observou ela interessada. A mulher olhou mais alguns minutos antes da porta se abrir e nela aparecer um homem: - Vai entrar? Aí fora faz frio. Você não tá com roupa muito adequada pra esse tempo.
- Suponho que você é o Vidente de Três Olhos – disse ela sem se importar com as palavras dele. E arranhando muito mal um portunhol.
- Não sei como você sabe dessa parte, mas sou eu. Quem é você? Quem te enviou? – o vidente assustou-se.
- As Guardiãs da Fronteira me disseram que você vive aqui. Me chamo Cira. Um sonho me indicou sua capacidade. E você tem nome, demônio chupador de sangue? – apesar de não se dar muito bem no espanhol, ela não se importava. Ele, por sua vez, não gostou muito de ser chamado daquele modo, mas aquilo era verdade, gostando ou não.
- Ángel Gregorio, mas todos me chamam só pelo primeiro nome – tentou falar algo em português, mas também arranhou um portunhol mal feito.
- Nome curioso o seu – ela se aproximou cuidadosamente, atenciosa à faixa envolvendo a testa.
Ele, por sua vez, reparava nela. Cira tinha a pele de uma brancura absurda. Como se fosse possível, mais clara que a dele, um morto-vivo. Músculos rijos, perfeitos. Olhos de pérola negra. Boca vermelha feito rosa colombiana. Cabelo preto e cacheado, mais bonito que comercial de shampoo fino. Ou que as madeixas das modelos de revista. Deus, ela era bonita de doer na visão. Não ajudava nadinha que ela usava um top de pele de cobra vermelha e calças de couro de vaca holandesa reforçando ainda mais aquela perfeição. E menos ainda colaborava que ela parecia não sentir frio algum. Como ele.
Cira, ao seu turno, também reparara seriamente nele. O vampiro não era absurdamente alto, nem tinha músculos como os dela. O cabelo era curto e castanho. Um bigode de igual cor e levemente grosso se destacava acima dos lábios cheios. Aparentava bem menos idade do que quando morrera. Claramente ele falecera muito mais velho. O jeito de andar e olhar não mentia. Decerto aquilo era obra de demônios antigos. Como ela sabia? Vivência de quase três séculos a ajudara a adquirir conhecimento sobre certas coisas. Não era incomum para ela encontrar aqueles seres esquisitos cujo alimento era sangue. Tinha matado vários deles, a pedido de pessoas desesperadas para se livrar de tais ataques. Esses e alguns outros vampiros eram cruéis e desumanos. Ele, porém, não era.
- Entra – disse ele para depois dizer: - Me desculpa se não tenho nada a te oferecer. Como você decerto já sabe, sou um vampiro.
- Comprei alguns suprimentos antes de vir aqui. Cheguei durante a tarde – respondeu ela para depois dizer: - Preciso que você encontre umas pessoas pra mim. É assunto urgente e sério.
- Senta e me conta tudo. Quanto mais você disser, mais posso te ajudar – disse ele com firmeza e sinceridade. Pelo jeito, a coisa do lado dela era mesmo séria. Aqueles olhos diziam muito mais do que as cordas vocais desejavam contar. A cicatriz nas costas vista por ele após ela tirar o fino casaco dizia-lhe coisas que seu terceiro olho muito já vira aqueles anos todos. A falta de um dedo falava mais que qualquer grito. O sofrimento guardado nela o fazia chorar por dentro.
E Cira claramente podia ver isso nele. Apesar de tudo, ainda existia alguma humanidade naquele coração morto. Por fim, achou melhor contar sua história desde o começo. Só assim conseguiria chegar até o ponto em que ela precisava de ajuda.
Detalhadamente relatou os fatos envolvendo sua vida. Em alguns momentos, chorava ao relembrar. Ele a acompanhava em seu pranto, revoltado com as horríveis coisas pelas quais ela passou. Odiava cada um dos que mal haviam lhe causado. Desejava estraçalhar suas gargantas e beber seu sangue em taças de cristal se eles ali estivessem.
- Se você quer encontrar essa gente pra matar, tem o meu apoio. E eu até vou com você – disse ele quando ela terminou.
- Eu te agradeço, mas é assunto meu, vidente – Cira replicou de imediato. Porque uma das muitas coisas que ela detestava era alguém querendo se meter aonde não era chamado. “Ele é bem um vampiro mesmo”, pensou ela antes de perguntar:
- Onde fica a cozinha? Preciso me alimentar. Depois eu converso com você.
- Segue pelo corredor. Na primeira porta – disse ele para em seguida ela pegar a bolsa com os suprimentos e sair a passo rápido em direção ao local indicado.
Cira demorou-se pelo menos duas horas entre cozinhar e comer. O cheiro era excelente, mas o vampiro naturalmente não se alimentava como ela. Restringia-se a comer a carne crua e fresca que havia comprado enquanto ela estava na cozinha. A bruxa observava-o enquanto ambos comiam. “Até que ele é bem atraente”, pensou ela vendo-o com lábios sujos pelo sangue que escorria daquele pedaço de coisa morta sangrenta. Ela mesma já havia comido coisas cruas quando não tinha condições de cozinhar, por motivos envolvendo fuga ou ocultação.
- O que você fazia quando era... humano? – perguntou ela pondo os cotovelos na mesa.
- Fiz de tudo e mais um pouco. Todos, no entanto, me conhecem como “el padre del Tango”. Pra todos os efeitos, fui eu quem criou esse gênero, embora ele já existisse alguns anos antes – respondeu Villoldo algo soturno.
- Sabe, não sou exatamente uma entendida nessas coisas, mas acho um tanto fascinante esse ritmo. Tem algo nele que me atrai muito: a maneira como vocês falam sobre coisas que poderiam acontecer com qualquer um. Só que é feito de uma forma tão única que é como se eu fosse para outro mundo – disse Cira sorrindo pela primeira vez.
- Cada pessoa ou lugar, de certo modo, é um mundo. O quão grande e amplo ele é, depende de você e dos fatores – disse ele também sorrindo pela primeira vez desde a chegada dela.
- É uma forma interessante de pensar – disse ela em resposta.
Os dois riram levemente. Cira percebeu que ele era alguém bom para conversar.
O jantar havia acabado há algum tempo. A bruxa e o vampiro viram-se do lado de fora olhando o céu noturno. Havia um bom clima entre eles. Pela primeira vez em muito tempo, Cira sentia-se à vontade com alguém. Embora ela soubesse os riscos de estar próxima de um vampiro. De repente, Ángel levantou-se com absurda rapidez: - Fica atrás de mim!
- Eu sei me defender – replicou ela ficando no mesmo alerta. Embora fosse quase inaudível, o ruído era bem claro para ambos: alguém se aproximava. Não apenas um, mas um grupo. Villoldo logo identificou o som...
- Espero que... você saiba lutar com bestas-feras.
- Eu mato ou firo uma sempre antes do café da manhã – respondeu ela séria. O vampiro, por sua vez, retirou de dentro do casaco uma katana cujo cabo tinha entalhes dourados. Que a bruxa reconheceu: - Yatagarasu.
- Ele foi o responsável pelo que sou hoje. Essa espada é o símbolo do amadurecimento dos vampiros transformados por ele – respondeu ele posicionando a arma para lutar.
- Nunca imaginei que você fosse discípulo dele – disse ela com um misto de sentimentos que envolviam receio e fascínio.
Ele nada disse em resposta, pois estava mais preocupado em saber de onde vinham aquelas criaturas. De repente, elas vieram de todos os lados com tudo o que tinham para oferecer. Cira não precisou de cinco segundos para partir para a ação. Villoldo igualmente fez. Foi com todo o seu arsenal de habilidades vampíricas.
O vampiro impressionou-se com a agilidade de movimentos dela. A bruxa usava toda a sorte de golpes de capoeira, coisa da qual ele não entendia muito. E extremamente precisos golpes de faca. Um instrumento maior do que os costumeiros e com um firme cabo entalhado em madeira de lei. Ela, por sua vez, assustou-se algo com a precisão cirúrgica dos cortes usados por ele. E não menos ficou impressionada com as esquivas e a imensa força possuídas por ele. Como de costume, Cira não deixou de ficar horrorizada com as ferozes mordidas feitas pelo vampiro nas criaturas. Muitas delas chegavam a arrancar grandes pedaços dos ombros e pescoços dos seres, matando-os quase na hora.
O grupo de pelo menos vinte criaturas agora se convertera em apenas cinco, com os quais o vampiro e a bruxa lutaram ferozmente. Pelo menos até as criaturas se resolverem a recuar. Repentinamente vários tiros abateram-nas. Dados por um homem magro de cabelos brancos. Ele disse: - Parece que a morena trouxe uma encrenca e tanto.
- A culpa não é dela! – exclamou Villoldo arreganhando as presas, furioso.
- Calma aí, ‘padre del Tango’. Eu não disse que ela é culpada de algo – disse o homem depois olhando para o vampiro:
- Sempre suspeitei que você não fosse normal. Agora comprovei. Me chamo Malaquias. Eu vivo no bosque.
- Você é aquele eremita que só aparece pra comprar suprimentos e visitar a menina que mora com a mulher dos doces – Ángel observava-o igualmente e logo disse: - Me impressiono sobre como você não parece assustado.
- Eu sou Caçador. Não tenho medo de criaturas de presas grandes e olhos vermelhos. Ou no seu caso, três olhos – respondeu ele segurando a arma no ombro.
- Caramba! – exclamou o vampiro sem saber o que pensar daquilo.
- Como sabe disso? Até onde eu fiquei sabendo, ninguém por aqui suspeita sobre isso. Por que logo o senhor? – Cira desconfiava do homem.
- Considerando de quem ele é discípulo, não é surpresa. Ángel Villoldo tem o poder da constelação de Libra, o Olho de Laplace. Capacidade de ver potenciais, encontrar pistas ocultas e em grande número, prever o futuro, embora fatos isolados – respondeu Malaquias sem temer a faca que Cira começava a levantar.
- Anjo, me dá uma boa razão pra não destripar esse aí – disse ela já evidenciando sua grande desconfiança.
- Se fosse pra nos matar, ele já teria feito. O cheiro não mente: as balas dele são feitas de magia de morte, que serve você sabe pra que, Cira – respondeu o “padre del Tango” sem acreditar no que via. Um Bruxo Caçador.
- Uma bala dessas, mesmo que não atinja um órgão vital, mata na hora, sem tirar nem por – sorriu ele para depois ficar sério: - Seja o que for que eles queriam, parece que era com ela.
- Tenho que aprender a colocar magia em projéteis. Seria útil – disse ela surpresa.
- Se você quiser, eu te ensino. No entanto, só quando nós sabermos quem são essas coisas e porque estavam aqui é que teremos tranquilidade. As bestas-tigres são ainda mais perigosas que os licantropos. Todo o cuidado é pouco com eles e com quem estiver por trás disso – respondeu ele com tal segurança que Ángel e Cira se entreolharam surpresos.
- Quem seria tão doente...? – o vampiro perguntava, mas foi interrompido por Malaquias: - Alguém que possivelmente odeia demais a sua nova amiga. É muito claro que eles vieram atrás dela. Só não sei o porquê.
- Isso você deixa que eu descubro – disse ela indo até um dos cadáveres abatidos pelos tiros de Malaquias. Embora nunca tivesse feito o que fez um dia sua maldita tia, a cobra Maria Caninana, Cira entendia daquilo. Tocou o morto, um homem perto dos quarenta anos com quem a vida não havia sido muito generosa, dada a aparência deplorável dele.
A criatura morta respondeu de forma quase ininteligível sobre uma mulher que os ordenou a ir atrás da bruxa filha do Norato. Ela queria se vingar a qualquer custo da maldita que havia destruído sua vida. Afinal, a coisa parou de se mexer. A bela Cira perguntou-se quem podia ter tamanho ódio. Sabia ela ter inimigos em meio mundo pelas mais variadas razões. Especialmente se elas envolviam dar uma boa lição em gente metida a besta que oprimia quem não merecia. Em verdade, ela perdera as contas de quanta gente a odiava até aquele momento.
- Parece que a sua empreitada não foi 100% bem sucedida, mas já deu pra pegar uma pista: estamos atrás de uma mulher tigre. Uma animorfa muito perigosa. Se ela transformou toda essa gente, tá longe de ser boa coisa – Malaquias colocou a arma de volta na cintura.
- Não apenas isso. Ela sabe que Cira está aqui. E se ela descobrir que matamos os serventes dela, ela não vai pensar duas vezes em aparecer. Melhor nós todos irmos embora senão... – Ángel dizia quando a bruxa o parou: - Isso é comigo, eu já disse.
- Não quero me meter, mas acho que três cabeças pensam melhor que uma. Não é desconsiderar a inteligência da senhorita Cira, mas vai Deus saber que truques essa criatura tem nas mangas. Eu duvido que seja só essa gentarada transformada em besta-fera – disse ele para quase fúria dela, que ia dar uma resposta quando Villoldo olhou-a de um modo que decididamente mexera demais com seus pensamentos.
Ele só podia ser louco de achar que era capaz de protegê-la. Por todas as coisas, ele não era capaz de dar-se conta que podia estar em perigo perto dela? Sorriu quase emocionada com a determinação dele em fazer o que considerava certo para cumprir seja lá o que fosse seu objetivo de vida:
- Sua mãe teve razão ao te batizar de Ángel. Você tá longe de ser um demônio. Ainda que diferente, você é mesmo um anjo.
Pela primeira vez em décadas, Ángel Villoldo sorriu verdadeiramente. Muito mais do que isso, ele tinha oficialmente se apaixonado por Cira.
*: Aláude em forma de pera.
Kaori:
Cira: