A estrada para a perdição – Parte 2
Ele nunca tinha corrido tanto em sua vida. Não se passaram sequer quinze minutos quando chegou até onde morava.
Esquecera-se completamente do que ia fazer logo após sair daquele hotel. Pôs as mãos na cabeça, ainda incrédulo, com a certeza de aquela voz ter sido apenas uma alucinação. Só que... desde quando vampiros tinham alucinações? Teria sido alguma consequência do acidente? Ou...?
Procurou não pensar nisso, mas não conseguiu. Iria à biblioteca ler alguma coisa sobre isso. Era a melhor maneira de saber sobre o que lhe acontecera. Entrou na casa sem fazer ruído algum. A escuridão e o silêncio indicavam que os hóspedes dormiam a sono solto. Era melhor assim, pois precisava colocar a cabeça no lugar depois do que ouvira.
O grande cômodo repleto de livros tranquilizou-o. Sabia onde estavam os cujo assunto era a mitologia dos vampiros. Pegou-os. Abriu um por um na tentativa de encontrar algo que falasse sobre alucinações, mas nada achou. No entanto, um tópico chamou-lhe a atenção em uma das publicações. Leu-o com atenção.
O assunto era a atração que o vampiro exercia nas mulheres. Em alguns casos, também em homens. Esta última ele comprovara não fazia muito. Segundo o que lia no livro em questão, os vampiros tinham uma natureza altamente volúvel na maior parte dos casos. E usavam inúmeros artifícios para envolver as vítimas em sua teia sedutora. O vampiro chegou a rir-se, pois aquela situação parecia-se com a dele quando era vivo. Era muito raro alguma mulher não cair de encantos por ele mesmo o próprio sendo avesso a encontros casuais.
Continuou lendo porque se interessara por outros tópicos. Especialmente os poderes, os quais ele ainda não havia descoberto na sua totalidade. Alguns dos poderes incluíam hipnose, transmutação em alguns animais ou em névoa, incrível e descomunal força física, agilidade felina e grande capacidade de regeneração celular. Gardel resolveu-se a testar o último usando um abridor de cartas ali colocado. Impressionou-se com o ocorrido após o corte no braço: a ferida fechou-se em segundos. Sem marca alguma que indicasse ele ter se cortado profundamente.
Em seguida olhou-se no espelho do canto da parede. Contemplou seus olhos agora vermelhos. Depois tocou as presas que se projetavam nas gengivas. Aquelas duas coisas o deixavam com aspecto assustadoramente feroz. A despeito da aparência, percebeu que gostava. Afinal, eram aqueles dentes os responsáveis por conseguir o sangue das vítimas direto da fonte. Seus devaneios acabaram-se quando a janela que refletida pelo espelho mostrou-lhe algo assustador.
Gardel esfregou os olhos achando estar vendo coisas. Aquilo, porém, não era uma alucinação. Como?! Ele perguntava-se enquanto olhava para ninguém menos que seu antigo sócio, Alfredo Le Pera. A boca, o queixo e o peito fartamente sujos de sangue indicavam que pelo menos um cadáver, talvez dois, havia sido criado. As roupas estavam em farrapos. Trapos que não deviam ser trocados há uma semana. E ele não parecia saber o que significava a palavra “banho”.
Questionava-se de quem teria sido aquela “obra”. Sobre como ele teria sido “reconstruído”, se fosse o caso. Temeu abrir a janela, mas o fez, mesmo não sabendo o que viria depois.
- Não gosto que me ignorem, mas te perdoo porque me deixou entrar – a voz dele era a que ele ouvira antes. Soava como a de uma criança choramingona sentindo-se incrivelmente sozinha.
- Jamais eu... te deixaria sozinho,... meu amigo – Gardel acolheu-o em um emocionado abraço. Ele de repente via-se como um pai consolando seu pequeno filho entristecido.
O vampiro percebeu que a madrugada estava muito avançada. Já eram três e meia da manhã. Levou seu amigo para o banheiro: - Você... precisa de um banho. De roupas limpas.
O outro assentiu. O “Zorzal Criollo” ajudou-o a banhar-se. Lavou-o cuidadosamente. O banho levou pelo menos trinta minutos porque o amigo não parava de agitar-se na água. No final, vestiu-o com um pijama cor de creme. O cheiro dele ainda era o mesmo. Forte. Delicioso. Exatamente como ele se lembrava de quando o sócio saía dos banheiros dos quartos dos hotéis. Às vezes de roupão. Ou só de toalha. Sacudiu a cabeça afastando os pensamentos. Isso não era hora de ficar devaneando! Tinha mais com o que se preocupar. Belo mestre era esse tal Janus!
- Quer brincar? – perguntou Le Pera percebendo-o triste. Gardel sorriu, desejando parecer igualmente infantil. De repente, era tentador estar naquela situação, totalmente esquecido daquela tragédia. Sem precisar preocupar-se em reaprender a viver. Sem memória alguma do passado. No entanto, as coisas não funcionavam daquela forma, especialmente se tratando de vampiros. O que ia fazer? O amanhecer não demorava, razão pela qual aproveitou o tempo sobrante para fazer desenhos com o amigo agora infantilizado.
Quando a manhã estava próxima, Gardel levou o amigo para seu quarto. Fechou bem as cortinas e deitou-o no lado direito de sua cama diurna. Alfredo ficou em posição típica de uma criança ao dormir, com direito ao polegar na boca. Em seguida deitou-se, colocando seu amigo em seus braços para que ele se sentisse seguro. Não o queria com medo ou algo parecido. Esperou ele adormecer para que pudesse dormir.
As horas passariam silenciosamente para os vampiros. Doriana e Lauro, por sua vez, estranharam a ausência do anfitrião quando despertaram para o café. Viram, porém, o célebre Dr. Volgin fazendo o desjejum. Ele, ao seu turno, surpreendeu-se com aquela dupla presença: - Quem são vocês?
- Seu paciente Charles Romuald nos permitiu ficar aqui a noite passada. Nosso carro quebrou na estrada e estava escurecendo. Por sorte encontramos essa casa – disse o rapaz receoso ao ver aquela reação.
- Isso explica porque havia um carro parado na estrada quando eu estava vindo para cá. O bosque, no entanto, não parece um local muito convidativo. Foi por isso que o antigo dono escolheu esse lugar para construir a casa – disse o médico observando-os atentamente.
- É um lugar bem tranquilo para se tratar um paciente em grave enfermidade. E estou surpresa em ver que seus métodos realmente funcionam. Meu sogro estaria encantado se pudesse ver isso – disse Doriana sorrindo.
- Procuro fazer meu melhor – disse ele disfarçando o pavor que sentia. Torcia para que o casal não descobrisse o segredo daquela mansão isolada.
- O senhor tem como nos levar à cidade após a estrada? Eu e minha esposa estamos em lua de mel – disse o rapaz “pisando em ovos”, pois não queria abusar da hospitalidade.
- Claro, não há problema algum. Que horas pretendem sair? – Miguel ofereceu biscoitos a eles.
- No mais tardar após o café da manhã. Ficamos de visitar as tias do Lauro e uma amiga minha de infância naquela cidade. Não temos muito tempo porque a licença do meu marido dura apenas três semanas. E ainda foi um presente do chefe dele, então não podemos abusar – disse ela suspirando.
- Ao que parece, você não gosta muito do chefe do seu marido – Volgin olhou-a.
- Na verdade eu o adoro, mas, ele constantemente precisa do meu amado. Já está velho e cansado, me dá um bocado de pena vê-lo sentir-se tão triste – respondeu ela colocando os cotovelos na mesa.
- Eu entendo. Meu pai também esteve assim nos últimos anos de vida dele. De fato não é fácil, mas é como funciona. Se bem que a regra nem sempre é essa – respondeu o médico com tristeza.
- Agradecemos muito pela excelente acolhida, de verdade – Lauro sorriu.
- Por nada, meu bom rapaz. Sinta-se como em sua casa e se quiser, posso fazer uma visita a seu pai e explicar-lhe meus métodos – sorriu Volgin.
- Eu ficaria encantado! – o rapaz exclamou alegre.
Doriana rompeu um pouco do clima ao perguntar: - Onde está Charles Romuald?
- Certamente está passeando pelo bosque. Costuma passar o dia andando para exercitar-se e observar os pássaros quando se cansa – o médico mentiu sem pudor algum.
- Nossa, ele sai tão cedo. Não é perigoso no estado de recuperação dele? – Lauro não sabia o que dizer além daquilo.
- Ele sabe se cuidar muito bem e tem o auxílio de uma bengala para locomover-se. E esses passeios ao ar livre fazem muito bem a ele – outra mentira foi somada.
O casal assentiu e logo fez seu desjejum. Passou-se algum tempo até eles fazerem a higiene e ficarem prontos para finalmente cumprirem seu plano original. Pensaram em despedir-se do anfitrião, mas Miguel disse que daria os agradecimentos por eles.
Volgin, após ajudar a colocar as malas no carro, levou-os até a cidade próxima, destino dos dois desde o início. Perguntou onde eles ficariam hospedados. Doriana respondeu que os dois ficariam na casa das tias do marido. Foi quando uma bela jovem abordou-os muito preocupada: - Meu Deus, vocês dois! O que houve que não chegaram ontem?! Vocês me garantiram que chegariam no começo da noite anterior!
A jovem esposa abraçou efusivamente a que falava: - Nos perdoe, Yavana, mas nosso carro quebrou no trajeto e nos hospedamos na casa desse senhor que nos trouxe. O paciente dele nos ofereceu hospitalidade.
- E se não é o famoso Dr. Volgin! Obrigada por aceitar ajudar meus amigos! – exclamou ela claramente fingindo felicidade embora genuinamente estivesse grata. Miguel, por sua vez, a muito custo desviava os olhos do generoso decote da jovem...
- Por nada, senhorita Yavana, o dever de um bom homem é ajudar seu próximo.
- E se você tivesse visto o quanto o paciente dele se parece com o falecido Gardel, você ficaria embasbacada! – riu Lauro para o espanto da amiga: - Nossa!
- Querido! – Doriana gargalhou, mas depois disse: - Acho melhor nós conversarmos na sua casa depois que nos acomodarmos na casa das tias dele.
- Yavana, que cara é essa? – Lauro olhou-a sem entender porque ela repentinamente perdera o sorriso. Até parecia que ela o forçara todo o tempo.
- Aconteceu uma coisa horrível ontem. Eu não ia contar agora, mas, uma das suas tias... morreu ontem. E a irmã dela está na minha casa – respondeu ela apavorada.
- Como?! – os três exclamaram juntos.
- Perda de sangue. O legista não entende quem ou o que pode ter feito aquelas marcas no pescoço dela – disse a moça claramente chocada com os acontecimentos.
- Perda de sangue? Marcas no pescoço? – Volgin horrorizou-se e desceu do carro: - Me permite ver o corpo?
- Olha, isso é com as autoridades. O senhor entende dessas coisas? – perguntou a jovem surpresa com a reação dele.
- Sim, eu já analisei um caso desses em Bogotá – respondeu ele para Yavana imediatamente indicar a localização do escritório legal.
A despeito do receio das autoridades locais e do legista, Miguel foi introduzido no local. Doriana, Lauro e Yavana tinham ido junto, curiosos ainda que assustados. O corpo estava na sala seguinte ao saguão. Ninguém esperava ter uma visão aterradora...
- Tia Ansina? – Lauro sentiu as lágrimas virem sem aviso ao vê-la ali estendida.
- Que tipo de coisa horrenda fizeram com ela? – a jovem esposa tentava em vão segurar o choro.
- Marcas parece bem inadequado em definir isso – a amiga viu-se desviando os olhos.
- Doutor, quem encontrou o corpo? A que horas foi a morte? – Miguel disfarçou que sabia sobre o que havia causado aquela garganta rasgada.
- O exame preliminar indicou que a hora do óbito possivelmente foi perto da meia-noite. A irmã dela, doña Amelia, foi quem encontrou o corpo logo após levantar-se e ir ao jardim. Ela estranhou que a irmã não estivesse na cama já que ambas acordam sempre na mesma hora. E ficou ainda mais ressabiada porque os lençóis estavam intactos. A pobre está em estado de choque até agora. Confesso estar surpreso por ela não ter tido um colapso fatal – disse o legista consternado.
- Eu sei! Tia Amelia tem um histórico familiar de cardiopatia grave – disse Lauro não conseguindo olhar o cadáver da outra tia.
Miguel aproximou-se da mesa e olhou atentamente a mulher morta. Seus conhecimentos sobre vampiros diziam-lhe que a criatura causadora daquilo era com certeza novata. A mordida vampírica geralmente parecia-se com uma dupla marca de punção com uma distância de pelo menos três centímetros entre elas. Naquele caso, porém, o vampiro em questão mordera violentamente, como se não tivesse noção alguma de como fazer. Não compreendia. No entanto, Volgin sabia da existência de vampiras, ou vampiros, que transformaram crianças de menos de cinco anos com a intenção de construir “a família ideal”. Doentio era o mínimo para definir tal coisa. Não gostava de lembrar o trágico final daquela história contada por Janus.
Será que...?! Não, era impossível. Ninguém era louco o...! Na verdade existia muita gente assim. Miguel, porém, preferia acreditar que aquela morte podia ter sido obra de algum vampiro feroz ou quem sabe até um lobisomem. Virou-se para seus espectadores e quando diria algo, deparou-se com uma visita inesperada...
- Professor Elijah Colman?
- Eu soube do ocorrido. Estou em visita para um amigo convalescente e ouvi esse fato sendo comentado na rua. Vim até aqui logo que pude – disse o visitante para depois apertar a mão do médico: - Finalmente tenho a honra de conhecer o Dr. Miguel Ângelo Volgin.
- Posso dizer a mesma coisa do senhor, professor Colman – ele retribuiu o aperto com igual educação.
Foi quando os dois olharam-se como se já soubessem o que realmente havia acontecido. Sentiam que podiam compartilhar um com o outro aquele macabro conhecimento. Volgin e Colman explicaram sobre provavelmente um animal selvagem ter sido o autor de tal coisa. Havia uma floresta próxima à cidade e talvez um lobo pudesse ter aparecido e matado a pobre senhora. Todos os que ouviram se entreolharam, abismados com tal explicação embora ela fosse bastante plausível. Perguntaram-se silenciosamente se o tal animal apareceria de novo.
O professor e o médico passaram algum tempo consolando o choroso sobrinho. Também ofereceram conforto à Doriana e Yavana, que estavam igualmente chorosas. Algum tempo passou-se. Lauro e Doriana haviam se acomodado na casa da amiga. Os dois homens que recém haviam se conhecido almoçaram juntos na casa da jovem hospedeira. E ofereceram consolo à pobre senhora que tragicamente perdera a irmã.
- Me perdoe, professor, mas preciso ir. Tenho um paciente para cuidar – disse Miguel algum tempo após o término do almoço.
- Claro, entendo – respondeu Elijah desejando melhoras à pessoa.
Volgin despediu-se de todos com algo de tristeza, desejando que Deus consolasse seus corações partidos. Voltou à mansão de Janus, esperando que ele já tivesse voltado. Ele poderia ajudar a esclarecer todo o ocorrido, pelo menos o médico achava.
Subiu ao dormitório de Carlos para ver como ele estava. Abriu a porta cuidadosamente mesmo os vampiros tendo um sono bastante pesado. Volgin sentiu uma intensa corrente elétrica percorrendo seu corpo ao ver a cena ali colocada. O médico estava estupefato. E achando no mínimo bizarra a cena de um homem chupando o dedo enquanto dormia em posição de criança. O escuro não lhe permitia ver claramente quem era.
De repente, ele acordou gritando desesperadamente. Chorava igual um menino pré-escolar acabando de acordar de um pesadelo horrível. O médico deu um inacreditável berro ao ver quem era. Gardel acordou de um pulo com o grito do amigo e abraçou Le Pera ao ver seu pranto: - Calma, já passou. Não tenha medo. Durma com o titio, anjo. Miguel!
A voz de Volgin recusava-se a sair. Reconhecia à distância um caso de amnésia traumática. Seu coração batia veloz como um cavalo em carreira. Sua mente processava tudo de forma extremamente rápida. A conclusão nada demorou.
Incredulidade era tudo o que podia definir seus sentimentos naquele momento.
Sim, vai ter terceira parte, . Espero que gostem dessa segunda e que estejam ansiosos pela próxima!
Doriana:
Yavana: