De vampiros portenhos e sonhos escabrosos - Especial Natal:
Enviado: Qua Dez 24, 2014 12:00
A continuação do conto especial, entitulado Aquela tarde de junho em Medellín, postado por ocasião do lançamento da obra completa de Carlos Gardel: viewtopic.php?f=53&t=10383" onclick="window.open(this.href);return false; (Especialmente para Tatuador e Fromking, , da Lady Carmilla, .)
365 dias exatos haviam se passado desde aquela estranha tarde. E a Argentina e o mundo permaneciam chorando a partida do “Zorzal Criollo”, “el morocho de Abasto”, “el Francesito” ou qualquer outro “apodo” possível.
Um ano de muitas noites insones, suturas, enxertos e sangrias. E Miguel Ângelo Volgin se dava por satisfeito sempre que alguma de suas inserções consertava alguma “parte estragada” do corpo de Gardel.
Não havia, porém, sido fácil. Janus sempre se oferecera como doador após alimentar-se. Inúmeros cortes em seu pescoço para maior quantia de sangue tinham sido feitos. O líquido rubro do Ancestral em muito colaborou para deixar Gardel muito melhor comparado aos 12 meses antes embora as primeiras 24 horas após o início da transformação tivessem sido tensas.
As violentas convulsões causadas pela conversão sacudiram Gardel com tal violência que por pouco o tanque não havia se partido em mil pedaços. Isso não impediu, no entanto, uma vermelha pintura espalhada pelo piso. O resultado não podia ter sido melhor, ao menos em relação à incerteza de antes: ele era eterno. Na verdade, ele tinha nascido para aquilo. A voz e composições já tinham dado a Carlos Gardel a condição de mito. E agora cantaria ainda melhor, se desejasse fazê-lo, tinha Janus pensado quando tudo havia enfim se acabado.
Entretanto, ainda havia muito a ser feito. Os ferimentos causados por aquele diabólico atentado ainda precisaram de cuidados durante aqueles últimos doze meses. O Ancestral logo colocou placas de titânio nas pernas do agora discípulo após Miguel costurá-las no lugar usando uma forte linha feita com encantos de bruxa. Um enxerto de pele havia sido colocado no local do rosto onde tinha séria queimadura. Os locais necrosados, especialmente a pele dos pés, ambos recuperados a muito custo, tinham sido substituídos por enxertos, obtidos de cadáveres, que se adaptariam à pele originalmente clara do cantor quando sangue fosse ali colocado com certa frequência.
Volgin relembrava aqueles fatos enquanto delicadamente passava um pano molhado de sangue retirado de uma bacia sobre o corpo de Gardel agora deitado, com os braços placidamente cruzados, em uma macia cama de lençóis vermelho rubi. A pele agora pálida e os cabelos escuros, agora pontuados por uma mecha branca, contrastavam belamente com a cor rubra das roupas de cama. De repente, o médico via-se sorrindo, pensando em quão bonito aquele homem ainda era a despeito de tudo o que lhe acontecera. Recordava de um dia, anos atrás, em que, após beberem além da conta, tinham dançado juntos. De quando, pelo cansaço e ainda vestidos, adormeceram abraçados. De acordar com o cantor dormindo sobre seu peito como se o mundo lá fora inexistisse.
Miguel de repente se viu tremendo as mãos com aquela inacreditável lembrança. Pediu a Deus ser capaz de esquecer aquilo que considerava um pecado infame. Era, porém, errado ter aceitado a forma como se despediram naquela manhã? Nunca tinha feito tal coisa. E mesmo sendo errado aos olhos da maioria e aos seus, tinha ficado profundamente mexido. Seus pensamentos cuidadosamente ordenados tinham sido arrasados por um único sopro de “fraqueza”. Nunca mais tinham se ordenado após aquilo. Desejou poder conversar com ele e colocar os pontos nunca mais ditos daquele dia nos seus lugares.
No momento, porém, restringiu-se a terminar a tarefa. Terminada a “aplicação sanguínea”, o hematologista novamente cobriu o corpo ali deitado. Ficava apenas com um lençol para facilitar as “medicações” e evitar sujar roupas de dormir desnecessariamente. Era banhado com frequência diária com panos molhados em água e sabão, pois embora fosse agora um morto-vivo, não precisava ter odor à morte. O médico olhou-o por um minuto que pareceu demasiado longo. Virou-se de volta sentindo imensa vontade de gritar. A lembrança tomava conta de sua mente, o fazia andar quase sem rumo, mesmo em direção à porta. Foi quando viu.
Não quis acreditar. Os olhos agora vermelhos dele o encaravam através do espelho. Não ousou olhar para trás. Um rápido movimento e as longas e afiadas unhas se agarravam na madeira da parte de baixo. Ele se encarava parecendo ver o próprio reflexo como rival. Tocou-se. De repente, um grito inacreditavelmente alto e feroz fez Volgin tapar os ouvidos com força. Miguel teve a certeza de que ele se lembrava do momento do acidente. Desconhecia a maneira de lidar com tal situação, ainda mais porque não sabia como ele havia feito aquilo. Janus garantiu que Gardel só acordaria quando ele o despertasse, mas as coisas haviam saído do plano original.
Em brutal agilidade, o cantor estava em pé, enrolado no lençol. Levantou levemente o tecido, para tentar entender o que eram aquelas placas metálicas envolvendo seus joelhos e canelas. O tecido novamente os cobriu, deixando o vampiro semelhante a uma figura grega por conta do modo como o mesmo encontrava-se enrolado em seu corpo desnudo. O hematologista, por sua vez, parecia querer fundir-se com a parede, tamanho o susto que experimentava. Seus olhos já lacrimejavam, pois ele se via incapaz de piscar. O ar desejava faltar-lhe, porém, manteve-se respirando ainda que irrequieto. Foi quando piscou novamente. E viu seu amigo olhando fixo para a bacia de sangue.
Gardel aproximou-se. A cor vermelha do líquido o atraía. A ponta de dois dedos pintou-se do rubi líquido. A língua sentiu o gosto que tão doce era para os vampiros, mas ocre para os humanos. Volgin achou ser a melhor hora para sair dali. Rapidamente deixou o quarto e trancou a porta. Correu para seu dormitório, passou a chave na porta e trancou-se no closet com as lágrimas agora correndo soltas por seu rosto. O pânico arrepiava cada centímetro de sua pele milimetricamente coberta. Tampou um grito ao ouvir o barulho de madeira sendo partida. Ficou mortalmente parado. Não soube quanto tempo se passou. Horas, minutos, não tinha certeza.
Seus olhos arregalaram-se ao ouvir a voz macia aveludada dele: - Eu... te perdoo, Miguel. Sei, apesar de tudo, que você só queria ajudar.
O médico nada disse, apenas encostou-se a porta com as mãos. Ainda tremia. Pranteava com culpa. Não apenas pelas mentiras, pelo “envenenamento”, pela omissão sobre Janus. Também por aquele dia anos antes, por seu egoísmo, por sua incapacidade de achar a verdadeira felicidade. Sentia vontade de morrer. Talvez fosse melhor...
Abriu a porta do closet. Encarou-o com o rosto molhado de lágrimas e os olhos vermelhos de tanto chorar. Carlos Gardel agora vestia um roupão preto de seda. Os filetes rubros escorrendo pelos cantos daquela boca sinalizavam que a bacia de sangue agora estava vazia. Disse Volgin: - Por favor, me mate.
Carlos, Charles ou como fosse que se chamava de fato, aproximou-se parecendo exatamente o mesmo de antes...
- As circunstâncias, eu de fato não sei, mas sinto que você não queria mentiras, porém, eu não acreditaria se você ou o tal Janus me dissessem. Não entendo a razão disso ou o que ocorreu de fato, mas, estou vivo. Embora eu saiba que não posso regressar à minha antiga vida. Vi os jornais que você deixou na cômoda. Não nego que estou profundamente triste por meus amigos e consternado pelos feridos. E óbvio, furioso com quem armou isso. Eu vi as suas anotações no escritório. Você como sempre estudando. É tão você isso, Miguel.
Volgin sentiu o abraço agora quente de seu amigo. Retribuiu o gesto. Queria apenas que aquele momento fosse eterno enquanto durasse. Desejou nunca mais chorar, sentir dor. Quis tão somente ficar ali abraçado a ele. Entristeceu-se algo ao ver-se livre daquela bela prisão física. Surpreendeu-se ao ver Gardel apagando as velas, deixando o quarto às escuras. O médico quis falar, mas foi calado por um delicado gesto. Novamente foi abraçado. O cantor parecia dizer que ele estava à vontade para desabafar, com lágrimas ou sem, todas as mágoas de seu peito. Assim, as cortinas caíram. E o hematologista, afinal, encontrou sua verdadeira felicidade: a de ser livre sem medo das próprias escolhas.
Na manhã seguinte, Volgin despertou, agora em sua cama, em um confortável pijama branco. Sorria como não fazia há muito tempo. Deu uma pequena risada ao perceber que Gardel o havia posto para dormir após passarem longo tempo juntos como os melhores amigos que eram há uma década. Estava certo de que o vampiro repousava em seu quarto escuro naquele momento. Levantou-se para comer. Após o café da manhã, metade do dia passou-se rapidamente. E a noite chegou sem o regresso de Janus. O Ancestral não voltaria tão cedo de sua viagem, pois estava resolvendo alguns muitos assuntos relacionados ao atentado contra seu agora discípulo Carlos Gardel. E outros dos quais o médico não tinha ideia.
- Volgin, acho que é hora do jantar. Você não anda comendo direito – disse o vampiro agora desperto ao chegar à sala, aonde o médico lia um jornal.
- Não estou com fome, Carlos. Desculpe-me – disse ele ao que o “Zorzal Criollo” cruzou os braços: - Miguel, eu não te quero doente. Coma nem que seja um aperitivo.
O médico levantou-se sem nada dizer. Agora temia levemente que seu amigo quisesse mordê-lo para alimentar-se, mas percebeu que Gardel parecia ter muito autocontrole para um neófito de apenas doze meses. Ainda mais que apenas algumas horas antes ele estava em coma. Perguntou-se como era possível algo assim. E questionava-se sobre como teria acordado por conta própria quando isso teoricamente era impossível. Afastou a curiosidade e logo comeu alguns pedaços de pão com patê de frango, acompanhados por um copo de vinho. Pareceu sentir a bebida descer estranha quando o outrora cantor disse: - Nós nunca conversamos sobre aquele dia.
- Eu sei, mas não achei, e não acho, necessário. Nossa relação nunca mudou, até onde eu sei. Mudou algo para você? – o hematologista dava pequenos suspiros ao falar.
- Nada mudou. Eu apenas... lembrei – o neófito acariciava o ombro de Miguel e em seguida disse carinhosamente: - Você é um dos poucos que sabe dos meus verdadeiros sentimentos e desejos.
- Sim, com certeza sei. Nós dois sabemos, meu amigo – Volgin tocou delicadamente a mão do cantor, porém, o olhou profundamente, como se tentasse decifrar o que havia por trás daqueles orbes negros: - Acho que você não está sendo honesto comigo. Eu o conheço bem para saber que você está se contendo. No fundo, você com certeza está furioso. Depois de tudo, até mesmo eu estaria assim. Então, por favor, desabafe, não tenha medo.
Gardel o soltou sem piscar. Suas íris já se encontravam rubras e as presas mostravam sua infelicidade...
- Por que... Miguel?!
O médico o olhou com ainda mais intensidade, estando agora em pé: - Eu só quero... te ouvir e consolar. Assim como você me ouviu e me consolou. Apenas isso. Se não quiser falar, no entanto, eu vou entender.
O “Zorzal Criollo” nada disse, apenas afastou-se como se dizendo que primeiro precisava colocar a cabeça no lugar.
E ele realmente necessitava disso. Saiu para o gélido ar da noite. “Hace un frío de cojones, pero no lo siento”, pensou enquanto caminhava, seus pés nus sobre a relva do bosque cercando a mansão. Usava apenas uma calça de pijama sobrepujada por uma camisa mal abotoada. O vento frio levantava as folhas enquanto ele andava ainda sentindo a frieza daquelas placas metálicas. O silêncio ali era tão grande que o vampiro era capaz de ouvir os próprios passos e as folhas se partindo enquanto ele as pisava. Foi quando sentiu a garganta arder de uma forma nunca antes sentida. Ele logo deduziu, baseado nos papéis de Volgin, que aquilo era a sede. Havia uma presa por perto. E ele agora estava assustadoramente feliz. Parou subitamente quando viu...
Dois homens ameaçavam uma bela jovem amarrada e amordaçada a uma árvore. Ameaçavam a pobre dizendo que matariam seu amado caso ela não voltasse para seu chefe e fizesse exatamente o ordenado: continuar conseguindo dinheiro para ele dançando. Gardel, no que concernia a sua humanidade, jamais admitiria aquela conduta maldita. Usou de sua agilidade recém-descoberta para subir em uma árvore próxima e pular para a qual estava a senhorita. Os galhos eram bastante altos e grossos, o que facilitaria bastante pegar os desgraçados e deixá-los iguais a roupas no sol.
Ela implorava aos seus algozes que não fizessem nada contra seu amor, pois ele não tinha nada a ver com aquilo. E que se ela tinha fugido, era porque apenas queria livrar-se de vez daquela vida. E o rapaz e ela queriam casar-se e ser felizes e isso não era errado. Eles, porém, responderam que ela era valiosa demais para simplesmente ir embora e usariam mais argumentos falaciosos quando um deles foi inesperadamente puxado por um rápido movimento. O parceiro do agora sumido olhou em volta tentando entender aquilo e alguns minutos após procurar até onde era capaz de ir, viu o desparecido cair com estrépito no solo. Morto.
A jovem ainda amarrada não acreditava no que estava testemunhando. Que criatura podia ser tão ágil e forte a ponto de abater um homem daquela estatura em pouco mais de cinco minutos? O capanga agora sozinho analisava o cadáver do parceiro. Notou uma marca dupla no pescoço. Uma mordida violenta, pensou ele. O morto estava exangue. Suas pupilas brutalmente dilatadas, como se sua última visão tivesse sido o mais puro terror. A última visão daquele homem ainda vivo também seria o horror. Gritou ao ser brusca e violentamente virado...
- Descobri que odeio desperdiçar uma boa refeição.
A pobre senhorita jamais havia visto nada daquele tipo. Não conseguia gritar mesmo vendo uma criatura de forma humanoide chupando o pescoço daquele bruto gigante. A escuridão do bosque não lhe permitia ver muita coisa embora muito claramente ele fosse alguém de pouco menos de 1,70 m e com certeza o cabelo era escuro pontuado por uma mecha branca brilhante. Fechou os olhos quando ele afinal terminou de matar o homem que antes lhe metia medo. Viu-se libertada das cordas apenas alguns segundos depois: - Acho melhor você vir comigo. Não é seguro você andar por aí nesse breu.
- Eu... agradeço, mas, quem é você? – a escuridão não lhe deixava enxergar um palmo claro.
- Alguém que odeia criminosos capazes de tratar uma dama desse jeito – respondeu Gardel respirando fundo.
- Quem falou que sou uma dama? Damas não dançam quase nuas para ganhar a vida ou no meu caso, sustentar os gastos de um desgraçado que me comprou na minha terra – disse ela com raiva e exibindo um sotaque claramente estrangeiro.
Andaram por algum tempo em silêncio até ele perguntar...
- Ásia ou próximo? – para depois dizer: - Não me importa o que você é. Isso não diminui o fato de eu ser capaz de ver seu sofrimento. Eu também passei coisas das quais eu não quero lembrar.
- Eu sou da Arábia Saudita. Vim para a Argentina quando era mocinha. Me chamo Anya. E você? – ela tentava enxergá-lo na escuridão ainda vigente do bosque.
- Charles Romuald – respondeu ele temendo ser reconhecido. Por alguma razão, ele achou imprudência dizer a ela sobre quem era. Um alarme intenso soava em sua mente. Gritava, para melhor definição.
- Sua voz é um tanto familiar, porém, Gardel morreu faz um ano. Foi ontem, pelo que me lembro. Ainda me recordo bem da comoção que foi o funeral e de quantos foram. Transferiram o corpo daqui para a Argentina em fevereiro – disse ela para em seguida surpreender-se com o inesperado sumiço dele. Percebeu afinal que estava próxima a uma casa enorme que se impunha de modo assustador.
E mais surpresa ainda ficou quando se viu levada para dentro por um homem de cabelos grisalhos e barba recém-feita...
- Por Nosso Senhor Cristo, de onde a senhorita veio?! O que houve?!
- Você não viu o homem que veio comigo?! – perguntou ela assustada.
- Me desculpe, mas não vi ninguém com você. A senhorita está um bocado transtornada, melhor entrar – mentiu Volgin ao perceber que seu amigo a havia salvo sabe-se do que. Ou talvez Miguel já soubesse. A boca suja de sangue lhe mostrava mais do que ele desejava ver. Deus, a polícia iria encontrar o cadáver ou os cadáveres no bosque? Era melhor Carlos ter escondido bem os corpos, senão os policiais com certeza bateriam ali.
Deu a Anya algo para comer e um chá calmante com pequena dose de sonífero. Ela aceitou não sabendo que dormiria sem saber quem a havia salvado naquela noite. E quando ela enfim adormeceu, Miguel foi confrontá-lo sobre o acontecido:
- O que deu em você, Carlos?! Tem ideia de como seria desastroso se a polícia batesse aqui?!
- Escondi os hijos de puta. Tão cedo a polícia não os acha. E seja quem os enviou atrás daquela moça, sabia o que fazia. Lembro claramente de ter ouvido falar daquela jovem. É dançarina exótica. Precisamente, dança do ventre – respondeu ele enquanto limpava os filetes sangrentos dos cantos da boca.
- Mesmo assim, você precisa tomar cuidado! Só Deus sabe como Janus reagiria caso te acontecesse outra desgraça! – exclamou Volgin com clara preocupação.
- E falando nele, quando o conhecerei? – perguntou o vampiro contemplando a imagem do espelho com certeza estranheza.
- Quando ele voltar de viagem. E caso pergunte, eu não sei o que ele anda fazendo. Janus não costuma falar nessas coisas – respondeu o médico colocando a mão no queixo.
- É possível que ele esteja buscando o desgraçado que matou minha banda, a tripulação e o Le Pera. E caso você esteja se perguntando se houve alguma coisa ruim entre eu e Alfredo, não, não houve. E muito menos imprudência embora eu não negue que Plaja não era lá muito competente quando se tratava de alguns assuntos. Eu lembro claramente que estávamos todos tranquilos naquele dia. Tudo aconteceu de modo tão repentino que não tive tempo de pensar direito – disse ele sabendo que Volgin não “ia com a cara” do brasileiro radicado na Argentina. Inclusive recordava da última vez que os dois haviam discutido. Uma discussão das feias pontuada por muitos insultos quase resultando em troca de socos.
- Levando em consideração alguns fatos, às vezes... – o médico ia dizer quando Gardel o interrompeu: - Não tire conclusões precipitadas. Eu sei do que falo.
- Não é como se a real causa algum dia fosse revelada – Miguel sentou-se à cama suspirando e depois perguntando: - Como você... acordou sozinho?
- Não sei, eu simplesmente abri os olhos. Como alguém saindo de um longo coma – respondeu o vampiro passando a mão sobre o rosto ainda em recuperação.
- Você está preocupado com isso? – Miguel novamente estava em pé e o olhava fixamente através do espelho onde ele se contemplava com estranha expressão impassível.
O vampiro permaneceu em seu silêncio contemplativo. Lembrou-se de sua criação, dos estudos, de seus inícios, de como costumava ser em vida, de tudo. De como havia sido idiota em várias ocasiões, sempre querendo evitar atritos mesmo sabendo que eram inevitáveis. De como era quase sempre tímido, retraído e solitário na maior parte do tempo. De quantas mulheres havia tido em sua tão curta vida. Dela. Aquela imprudente menininha por quem havia se encantado e com quem havia passado vários anos de sua vida. Deus, como se arrependia daquilo. Daria qualquer coisa para apagar aquele fato. Para ter “quebrado” com ela como realmente se devia. E para nunca ter tido a falta de firmeza que caracterizou boa parte de sua vivência. Contemplava-se agora com tristeza.
Arrependia-se de muitas coisas que havia feito. Era capaz de dar até a alma para livrar-se daquele arrependimento. Lágrimas rubras correram suas faces. Viu-se sendo abraçado por Volgin: - Nunca esqueça que estarei sempre com você.
- Para sempre? – disse o cantor tocando as mãos do amigo cruzadas sobre seu peito naquele abraço.
- Eternamente – Miguel apoiou o queixo sobre o ombro do vampiro, que sorriu percebendo: ele realmente preferia a companhia de homens. Especialmente a do hematologista. Nenhum amigo que conhecera antes podia comparar-se com a pureza honesta daquele médico tão adorável e competente cuja vida tinha sido tão complicada quanto a dele. Ou até mais. Sabia todos os pormenores tristes de Volgin. O consolara de sua profunda tristeza relacionada às suas escolhas. E agora era consolado porque pranteava arrependido. De repente, eles eram complemento um do outro. Como duas metades perfeitamente encaixadas após tanto tempo desencontradas.
E naquela noite, viram-se novamente abraçados como os amigos que para sempre seriam.
Enquanto a felicidade vinha de um lado, do outro vinha estranha incerteza...
- Você está certa de que ele é... a reencarnação d’O Cavaleiro Dourado? Logo ele?
- Eu reconheceria Gilgamesh até de olhos fechados.
- Zorina, eu sei o quanto você o amou, mas existe uma diferença entre o amor cego e a coisa certa.
- Janus, se você observar com cuidado, irá reconhecê-lo também.
O Ancestral cuidadosamente o observou. O vampiro observado estava encolhido em um canto tal qual uma criança assustada e perdida. Janus logo percebeu que ele decididamente estava de volta à primeira fase da vida. Literalmente recomeçando do zero. A “mulher-vampiro” tinha lhe dito ser muito possível o trauma do acidente tê-lo feito perder a memória de forma violenta. De tal maneira que ele agia e chorava como uma criança começando a descobrir o mundo.
O veterano vampiro enfim sorriu. Olhou para o estrelado céu de fora. Agradeceu aos deuses por novamente concederem-lhe aquela dádiva. Delicadamente aproximou-se do neófito e sorriu oferecendo-lhe um pião de brinquedo na tentativa de conquistar sua confiança. Desejou ser capaz de trazer-lhe a memória de volta.
Suspirou, por fim. Havia esperado tanto tempo, portanto mais alguns anos não seria problema.
O real problema mesmo seria esconder aqueles segredos por tanto tempo quanto possível. Esperava ser capaz disso.
Espero que todos do fórum apreciem mais essa escrita, . Comentem, sugiram, opinem.
Despertar repentino
365 dias exatos haviam se passado desde aquela estranha tarde. E a Argentina e o mundo permaneciam chorando a partida do “Zorzal Criollo”, “el morocho de Abasto”, “el Francesito” ou qualquer outro “apodo” possível.
Um ano de muitas noites insones, suturas, enxertos e sangrias. E Miguel Ângelo Volgin se dava por satisfeito sempre que alguma de suas inserções consertava alguma “parte estragada” do corpo de Gardel.
Não havia, porém, sido fácil. Janus sempre se oferecera como doador após alimentar-se. Inúmeros cortes em seu pescoço para maior quantia de sangue tinham sido feitos. O líquido rubro do Ancestral em muito colaborou para deixar Gardel muito melhor comparado aos 12 meses antes embora as primeiras 24 horas após o início da transformação tivessem sido tensas.
As violentas convulsões causadas pela conversão sacudiram Gardel com tal violência que por pouco o tanque não havia se partido em mil pedaços. Isso não impediu, no entanto, uma vermelha pintura espalhada pelo piso. O resultado não podia ter sido melhor, ao menos em relação à incerteza de antes: ele era eterno. Na verdade, ele tinha nascido para aquilo. A voz e composições já tinham dado a Carlos Gardel a condição de mito. E agora cantaria ainda melhor, se desejasse fazê-lo, tinha Janus pensado quando tudo havia enfim se acabado.
Entretanto, ainda havia muito a ser feito. Os ferimentos causados por aquele diabólico atentado ainda precisaram de cuidados durante aqueles últimos doze meses. O Ancestral logo colocou placas de titânio nas pernas do agora discípulo após Miguel costurá-las no lugar usando uma forte linha feita com encantos de bruxa. Um enxerto de pele havia sido colocado no local do rosto onde tinha séria queimadura. Os locais necrosados, especialmente a pele dos pés, ambos recuperados a muito custo, tinham sido substituídos por enxertos, obtidos de cadáveres, que se adaptariam à pele originalmente clara do cantor quando sangue fosse ali colocado com certa frequência.
Volgin relembrava aqueles fatos enquanto delicadamente passava um pano molhado de sangue retirado de uma bacia sobre o corpo de Gardel agora deitado, com os braços placidamente cruzados, em uma macia cama de lençóis vermelho rubi. A pele agora pálida e os cabelos escuros, agora pontuados por uma mecha branca, contrastavam belamente com a cor rubra das roupas de cama. De repente, o médico via-se sorrindo, pensando em quão bonito aquele homem ainda era a despeito de tudo o que lhe acontecera. Recordava de um dia, anos atrás, em que, após beberem além da conta, tinham dançado juntos. De quando, pelo cansaço e ainda vestidos, adormeceram abraçados. De acordar com o cantor dormindo sobre seu peito como se o mundo lá fora inexistisse.
Miguel de repente se viu tremendo as mãos com aquela inacreditável lembrança. Pediu a Deus ser capaz de esquecer aquilo que considerava um pecado infame. Era, porém, errado ter aceitado a forma como se despediram naquela manhã? Nunca tinha feito tal coisa. E mesmo sendo errado aos olhos da maioria e aos seus, tinha ficado profundamente mexido. Seus pensamentos cuidadosamente ordenados tinham sido arrasados por um único sopro de “fraqueza”. Nunca mais tinham se ordenado após aquilo. Desejou poder conversar com ele e colocar os pontos nunca mais ditos daquele dia nos seus lugares.
No momento, porém, restringiu-se a terminar a tarefa. Terminada a “aplicação sanguínea”, o hematologista novamente cobriu o corpo ali deitado. Ficava apenas com um lençol para facilitar as “medicações” e evitar sujar roupas de dormir desnecessariamente. Era banhado com frequência diária com panos molhados em água e sabão, pois embora fosse agora um morto-vivo, não precisava ter odor à morte. O médico olhou-o por um minuto que pareceu demasiado longo. Virou-se de volta sentindo imensa vontade de gritar. A lembrança tomava conta de sua mente, o fazia andar quase sem rumo, mesmo em direção à porta. Foi quando viu.
Não quis acreditar. Os olhos agora vermelhos dele o encaravam através do espelho. Não ousou olhar para trás. Um rápido movimento e as longas e afiadas unhas se agarravam na madeira da parte de baixo. Ele se encarava parecendo ver o próprio reflexo como rival. Tocou-se. De repente, um grito inacreditavelmente alto e feroz fez Volgin tapar os ouvidos com força. Miguel teve a certeza de que ele se lembrava do momento do acidente. Desconhecia a maneira de lidar com tal situação, ainda mais porque não sabia como ele havia feito aquilo. Janus garantiu que Gardel só acordaria quando ele o despertasse, mas as coisas haviam saído do plano original.
Em brutal agilidade, o cantor estava em pé, enrolado no lençol. Levantou levemente o tecido, para tentar entender o que eram aquelas placas metálicas envolvendo seus joelhos e canelas. O tecido novamente os cobriu, deixando o vampiro semelhante a uma figura grega por conta do modo como o mesmo encontrava-se enrolado em seu corpo desnudo. O hematologista, por sua vez, parecia querer fundir-se com a parede, tamanho o susto que experimentava. Seus olhos já lacrimejavam, pois ele se via incapaz de piscar. O ar desejava faltar-lhe, porém, manteve-se respirando ainda que irrequieto. Foi quando piscou novamente. E viu seu amigo olhando fixo para a bacia de sangue.
Gardel aproximou-se. A cor vermelha do líquido o atraía. A ponta de dois dedos pintou-se do rubi líquido. A língua sentiu o gosto que tão doce era para os vampiros, mas ocre para os humanos. Volgin achou ser a melhor hora para sair dali. Rapidamente deixou o quarto e trancou a porta. Correu para seu dormitório, passou a chave na porta e trancou-se no closet com as lágrimas agora correndo soltas por seu rosto. O pânico arrepiava cada centímetro de sua pele milimetricamente coberta. Tampou um grito ao ouvir o barulho de madeira sendo partida. Ficou mortalmente parado. Não soube quanto tempo se passou. Horas, minutos, não tinha certeza.
Seus olhos arregalaram-se ao ouvir a voz macia aveludada dele: - Eu... te perdoo, Miguel. Sei, apesar de tudo, que você só queria ajudar.
O médico nada disse, apenas encostou-se a porta com as mãos. Ainda tremia. Pranteava com culpa. Não apenas pelas mentiras, pelo “envenenamento”, pela omissão sobre Janus. Também por aquele dia anos antes, por seu egoísmo, por sua incapacidade de achar a verdadeira felicidade. Sentia vontade de morrer. Talvez fosse melhor...
Abriu a porta do closet. Encarou-o com o rosto molhado de lágrimas e os olhos vermelhos de tanto chorar. Carlos Gardel agora vestia um roupão preto de seda. Os filetes rubros escorrendo pelos cantos daquela boca sinalizavam que a bacia de sangue agora estava vazia. Disse Volgin: - Por favor, me mate.
Carlos, Charles ou como fosse que se chamava de fato, aproximou-se parecendo exatamente o mesmo de antes...
- As circunstâncias, eu de fato não sei, mas sinto que você não queria mentiras, porém, eu não acreditaria se você ou o tal Janus me dissessem. Não entendo a razão disso ou o que ocorreu de fato, mas, estou vivo. Embora eu saiba que não posso regressar à minha antiga vida. Vi os jornais que você deixou na cômoda. Não nego que estou profundamente triste por meus amigos e consternado pelos feridos. E óbvio, furioso com quem armou isso. Eu vi as suas anotações no escritório. Você como sempre estudando. É tão você isso, Miguel.
Volgin sentiu o abraço agora quente de seu amigo. Retribuiu o gesto. Queria apenas que aquele momento fosse eterno enquanto durasse. Desejou nunca mais chorar, sentir dor. Quis tão somente ficar ali abraçado a ele. Entristeceu-se algo ao ver-se livre daquela bela prisão física. Surpreendeu-se ao ver Gardel apagando as velas, deixando o quarto às escuras. O médico quis falar, mas foi calado por um delicado gesto. Novamente foi abraçado. O cantor parecia dizer que ele estava à vontade para desabafar, com lágrimas ou sem, todas as mágoas de seu peito. Assim, as cortinas caíram. E o hematologista, afinal, encontrou sua verdadeira felicidade: a de ser livre sem medo das próprias escolhas.
Na manhã seguinte, Volgin despertou, agora em sua cama, em um confortável pijama branco. Sorria como não fazia há muito tempo. Deu uma pequena risada ao perceber que Gardel o havia posto para dormir após passarem longo tempo juntos como os melhores amigos que eram há uma década. Estava certo de que o vampiro repousava em seu quarto escuro naquele momento. Levantou-se para comer. Após o café da manhã, metade do dia passou-se rapidamente. E a noite chegou sem o regresso de Janus. O Ancestral não voltaria tão cedo de sua viagem, pois estava resolvendo alguns muitos assuntos relacionados ao atentado contra seu agora discípulo Carlos Gardel. E outros dos quais o médico não tinha ideia.
- Volgin, acho que é hora do jantar. Você não anda comendo direito – disse o vampiro agora desperto ao chegar à sala, aonde o médico lia um jornal.
- Não estou com fome, Carlos. Desculpe-me – disse ele ao que o “Zorzal Criollo” cruzou os braços: - Miguel, eu não te quero doente. Coma nem que seja um aperitivo.
O médico levantou-se sem nada dizer. Agora temia levemente que seu amigo quisesse mordê-lo para alimentar-se, mas percebeu que Gardel parecia ter muito autocontrole para um neófito de apenas doze meses. Ainda mais que apenas algumas horas antes ele estava em coma. Perguntou-se como era possível algo assim. E questionava-se sobre como teria acordado por conta própria quando isso teoricamente era impossível. Afastou a curiosidade e logo comeu alguns pedaços de pão com patê de frango, acompanhados por um copo de vinho. Pareceu sentir a bebida descer estranha quando o outrora cantor disse: - Nós nunca conversamos sobre aquele dia.
- Eu sei, mas não achei, e não acho, necessário. Nossa relação nunca mudou, até onde eu sei. Mudou algo para você? – o hematologista dava pequenos suspiros ao falar.
- Nada mudou. Eu apenas... lembrei – o neófito acariciava o ombro de Miguel e em seguida disse carinhosamente: - Você é um dos poucos que sabe dos meus verdadeiros sentimentos e desejos.
- Sim, com certeza sei. Nós dois sabemos, meu amigo – Volgin tocou delicadamente a mão do cantor, porém, o olhou profundamente, como se tentasse decifrar o que havia por trás daqueles orbes negros: - Acho que você não está sendo honesto comigo. Eu o conheço bem para saber que você está se contendo. No fundo, você com certeza está furioso. Depois de tudo, até mesmo eu estaria assim. Então, por favor, desabafe, não tenha medo.
Gardel o soltou sem piscar. Suas íris já se encontravam rubras e as presas mostravam sua infelicidade...
- Por que... Miguel?!
O médico o olhou com ainda mais intensidade, estando agora em pé: - Eu só quero... te ouvir e consolar. Assim como você me ouviu e me consolou. Apenas isso. Se não quiser falar, no entanto, eu vou entender.
O “Zorzal Criollo” nada disse, apenas afastou-se como se dizendo que primeiro precisava colocar a cabeça no lugar.
E ele realmente necessitava disso. Saiu para o gélido ar da noite. “Hace un frío de cojones, pero no lo siento”, pensou enquanto caminhava, seus pés nus sobre a relva do bosque cercando a mansão. Usava apenas uma calça de pijama sobrepujada por uma camisa mal abotoada. O vento frio levantava as folhas enquanto ele andava ainda sentindo a frieza daquelas placas metálicas. O silêncio ali era tão grande que o vampiro era capaz de ouvir os próprios passos e as folhas se partindo enquanto ele as pisava. Foi quando sentiu a garganta arder de uma forma nunca antes sentida. Ele logo deduziu, baseado nos papéis de Volgin, que aquilo era a sede. Havia uma presa por perto. E ele agora estava assustadoramente feliz. Parou subitamente quando viu...
Dois homens ameaçavam uma bela jovem amarrada e amordaçada a uma árvore. Ameaçavam a pobre dizendo que matariam seu amado caso ela não voltasse para seu chefe e fizesse exatamente o ordenado: continuar conseguindo dinheiro para ele dançando. Gardel, no que concernia a sua humanidade, jamais admitiria aquela conduta maldita. Usou de sua agilidade recém-descoberta para subir em uma árvore próxima e pular para a qual estava a senhorita. Os galhos eram bastante altos e grossos, o que facilitaria bastante pegar os desgraçados e deixá-los iguais a roupas no sol.
Ela implorava aos seus algozes que não fizessem nada contra seu amor, pois ele não tinha nada a ver com aquilo. E que se ela tinha fugido, era porque apenas queria livrar-se de vez daquela vida. E o rapaz e ela queriam casar-se e ser felizes e isso não era errado. Eles, porém, responderam que ela era valiosa demais para simplesmente ir embora e usariam mais argumentos falaciosos quando um deles foi inesperadamente puxado por um rápido movimento. O parceiro do agora sumido olhou em volta tentando entender aquilo e alguns minutos após procurar até onde era capaz de ir, viu o desparecido cair com estrépito no solo. Morto.
A jovem ainda amarrada não acreditava no que estava testemunhando. Que criatura podia ser tão ágil e forte a ponto de abater um homem daquela estatura em pouco mais de cinco minutos? O capanga agora sozinho analisava o cadáver do parceiro. Notou uma marca dupla no pescoço. Uma mordida violenta, pensou ele. O morto estava exangue. Suas pupilas brutalmente dilatadas, como se sua última visão tivesse sido o mais puro terror. A última visão daquele homem ainda vivo também seria o horror. Gritou ao ser brusca e violentamente virado...
- Descobri que odeio desperdiçar uma boa refeição.
A pobre senhorita jamais havia visto nada daquele tipo. Não conseguia gritar mesmo vendo uma criatura de forma humanoide chupando o pescoço daquele bruto gigante. A escuridão do bosque não lhe permitia ver muita coisa embora muito claramente ele fosse alguém de pouco menos de 1,70 m e com certeza o cabelo era escuro pontuado por uma mecha branca brilhante. Fechou os olhos quando ele afinal terminou de matar o homem que antes lhe metia medo. Viu-se libertada das cordas apenas alguns segundos depois: - Acho melhor você vir comigo. Não é seguro você andar por aí nesse breu.
- Eu... agradeço, mas, quem é você? – a escuridão não lhe deixava enxergar um palmo claro.
- Alguém que odeia criminosos capazes de tratar uma dama desse jeito – respondeu Gardel respirando fundo.
- Quem falou que sou uma dama? Damas não dançam quase nuas para ganhar a vida ou no meu caso, sustentar os gastos de um desgraçado que me comprou na minha terra – disse ela com raiva e exibindo um sotaque claramente estrangeiro.
Andaram por algum tempo em silêncio até ele perguntar...
- Ásia ou próximo? – para depois dizer: - Não me importa o que você é. Isso não diminui o fato de eu ser capaz de ver seu sofrimento. Eu também passei coisas das quais eu não quero lembrar.
- Eu sou da Arábia Saudita. Vim para a Argentina quando era mocinha. Me chamo Anya. E você? – ela tentava enxergá-lo na escuridão ainda vigente do bosque.
- Charles Romuald – respondeu ele temendo ser reconhecido. Por alguma razão, ele achou imprudência dizer a ela sobre quem era. Um alarme intenso soava em sua mente. Gritava, para melhor definição.
- Sua voz é um tanto familiar, porém, Gardel morreu faz um ano. Foi ontem, pelo que me lembro. Ainda me recordo bem da comoção que foi o funeral e de quantos foram. Transferiram o corpo daqui para a Argentina em fevereiro – disse ela para em seguida surpreender-se com o inesperado sumiço dele. Percebeu afinal que estava próxima a uma casa enorme que se impunha de modo assustador.
E mais surpresa ainda ficou quando se viu levada para dentro por um homem de cabelos grisalhos e barba recém-feita...
- Por Nosso Senhor Cristo, de onde a senhorita veio?! O que houve?!
- Você não viu o homem que veio comigo?! – perguntou ela assustada.
- Me desculpe, mas não vi ninguém com você. A senhorita está um bocado transtornada, melhor entrar – mentiu Volgin ao perceber que seu amigo a havia salvo sabe-se do que. Ou talvez Miguel já soubesse. A boca suja de sangue lhe mostrava mais do que ele desejava ver. Deus, a polícia iria encontrar o cadáver ou os cadáveres no bosque? Era melhor Carlos ter escondido bem os corpos, senão os policiais com certeza bateriam ali.
Deu a Anya algo para comer e um chá calmante com pequena dose de sonífero. Ela aceitou não sabendo que dormiria sem saber quem a havia salvado naquela noite. E quando ela enfim adormeceu, Miguel foi confrontá-lo sobre o acontecido:
- O que deu em você, Carlos?! Tem ideia de como seria desastroso se a polícia batesse aqui?!
- Escondi os hijos de puta. Tão cedo a polícia não os acha. E seja quem os enviou atrás daquela moça, sabia o que fazia. Lembro claramente de ter ouvido falar daquela jovem. É dançarina exótica. Precisamente, dança do ventre – respondeu ele enquanto limpava os filetes sangrentos dos cantos da boca.
- Mesmo assim, você precisa tomar cuidado! Só Deus sabe como Janus reagiria caso te acontecesse outra desgraça! – exclamou Volgin com clara preocupação.
- E falando nele, quando o conhecerei? – perguntou o vampiro contemplando a imagem do espelho com certeza estranheza.
- Quando ele voltar de viagem. E caso pergunte, eu não sei o que ele anda fazendo. Janus não costuma falar nessas coisas – respondeu o médico colocando a mão no queixo.
- É possível que ele esteja buscando o desgraçado que matou minha banda, a tripulação e o Le Pera. E caso você esteja se perguntando se houve alguma coisa ruim entre eu e Alfredo, não, não houve. E muito menos imprudência embora eu não negue que Plaja não era lá muito competente quando se tratava de alguns assuntos. Eu lembro claramente que estávamos todos tranquilos naquele dia. Tudo aconteceu de modo tão repentino que não tive tempo de pensar direito – disse ele sabendo que Volgin não “ia com a cara” do brasileiro radicado na Argentina. Inclusive recordava da última vez que os dois haviam discutido. Uma discussão das feias pontuada por muitos insultos quase resultando em troca de socos.
- Levando em consideração alguns fatos, às vezes... – o médico ia dizer quando Gardel o interrompeu: - Não tire conclusões precipitadas. Eu sei do que falo.
- Não é como se a real causa algum dia fosse revelada – Miguel sentou-se à cama suspirando e depois perguntando: - Como você... acordou sozinho?
- Não sei, eu simplesmente abri os olhos. Como alguém saindo de um longo coma – respondeu o vampiro passando a mão sobre o rosto ainda em recuperação.
- Você está preocupado com isso? – Miguel novamente estava em pé e o olhava fixamente através do espelho onde ele se contemplava com estranha expressão impassível.
O vampiro permaneceu em seu silêncio contemplativo. Lembrou-se de sua criação, dos estudos, de seus inícios, de como costumava ser em vida, de tudo. De como havia sido idiota em várias ocasiões, sempre querendo evitar atritos mesmo sabendo que eram inevitáveis. De como era quase sempre tímido, retraído e solitário na maior parte do tempo. De quantas mulheres havia tido em sua tão curta vida. Dela. Aquela imprudente menininha por quem havia se encantado e com quem havia passado vários anos de sua vida. Deus, como se arrependia daquilo. Daria qualquer coisa para apagar aquele fato. Para ter “quebrado” com ela como realmente se devia. E para nunca ter tido a falta de firmeza que caracterizou boa parte de sua vivência. Contemplava-se agora com tristeza.
Arrependia-se de muitas coisas que havia feito. Era capaz de dar até a alma para livrar-se daquele arrependimento. Lágrimas rubras correram suas faces. Viu-se sendo abraçado por Volgin: - Nunca esqueça que estarei sempre com você.
- Para sempre? – disse o cantor tocando as mãos do amigo cruzadas sobre seu peito naquele abraço.
- Eternamente – Miguel apoiou o queixo sobre o ombro do vampiro, que sorriu percebendo: ele realmente preferia a companhia de homens. Especialmente a do hematologista. Nenhum amigo que conhecera antes podia comparar-se com a pureza honesta daquele médico tão adorável e competente cuja vida tinha sido tão complicada quanto a dele. Ou até mais. Sabia todos os pormenores tristes de Volgin. O consolara de sua profunda tristeza relacionada às suas escolhas. E agora era consolado porque pranteava arrependido. De repente, eles eram complemento um do outro. Como duas metades perfeitamente encaixadas após tanto tempo desencontradas.
E naquela noite, viram-se novamente abraçados como os amigos que para sempre seriam.
Enquanto a felicidade vinha de um lado, do outro vinha estranha incerteza...
- Você está certa de que ele é... a reencarnação d’O Cavaleiro Dourado? Logo ele?
- Eu reconheceria Gilgamesh até de olhos fechados.
- Zorina, eu sei o quanto você o amou, mas existe uma diferença entre o amor cego e a coisa certa.
- Janus, se você observar com cuidado, irá reconhecê-lo também.
O Ancestral cuidadosamente o observou. O vampiro observado estava encolhido em um canto tal qual uma criança assustada e perdida. Janus logo percebeu que ele decididamente estava de volta à primeira fase da vida. Literalmente recomeçando do zero. A “mulher-vampiro” tinha lhe dito ser muito possível o trauma do acidente tê-lo feito perder a memória de forma violenta. De tal maneira que ele agia e chorava como uma criança começando a descobrir o mundo.
O veterano vampiro enfim sorriu. Olhou para o estrelado céu de fora. Agradeceu aos deuses por novamente concederem-lhe aquela dádiva. Delicadamente aproximou-se do neófito e sorriu oferecendo-lhe um pião de brinquedo na tentativa de conquistar sua confiança. Desejou ser capaz de trazer-lhe a memória de volta.
Suspirou, por fim. Havia esperado tanto tempo, portanto mais alguns anos não seria problema.
O real problema mesmo seria esconder aqueles segredos por tanto tempo quanto possível. Esperava ser capaz disso.
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