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De vampiros portenhos e sonhos escabrosos: Especial Ano Novo

Enviado: Qua Dez 31, 2014 06:18
por Lady Carmilla DWFan
Esse conto eu postei originalmente no Cine Cult como o 21º da antologia, porém, resolvi que ele seria o especial de Ano Novo do fórum, :D .

Dois personagens já velhos conhecidos nossos em um conto servindo como prequel da história "A boa morte"...
O espião que tocava*
Era o lusco-fusco do fim da tarde, próximo à noite.
Há menos de meia hora ele tinha saído de um concerto onde era o principal solista. Resolveu, naquele minuto, visitar um local que há muito não ia. Embora muitos olvidassem, aquele dia marcava os 55 anos da desaparição física da primeira bandoneonista profissional da Argentina. Paquita Bernardo havia falecido dezesseis dias antes de completar 25 primaveras. Havia sofrido uma broncopneumonia advinda de um resfriado mal cuidado.
Osvaldo Pugliese recordava da época tocando na “Orquestra Paquita”. Era só um menino quando começou. Pelo menos catorze anos. Como o tempo passa rápido, pensou. Já estava com 75 naquela ocasião. Cabelos brancos, uma filha de 44 e uma neta de três. Perguntou-se como seria se sua primeira regente tivesse vivido mais que seus breves 25. Já se encontrava no Cemitério da Chacarita quando terminou de recordar a “niñez” musical. O túmulo-monumento ficava a boa distância da entrada, custando a ele uma caminhada de bons minutos. As pernas já não aguentavam muito embora usasse bengala.
A sepultura continuava tão bem cuidada quanto ele podia lembrar-se. Recordava de quando um grupo havia arrecadado bom dinheiro para levantar aquela belíssima estátua. Observando atentamente, viu uma jovem agachada sobre a lateral do local colocando um enorme buquê de rosas. Ela parecia sorrir enquanto arrumava as flores. As que ele levava, crisântemos brancos, pareciam pouco bonitas comparadas àquelas rosas vermelho-vivo. Cor de sangue. Surpreendeu-se quando ela levantou-se para sair. Ela parecia tão surpresa quanto ele...
- Osvaldo Pugliese?
- Por tudo o que me é mais sagrado! – exclamou com espanto. Por pouco não tropeçou. A jovem ali à sua frente era demasiado semelhante à Paquita Bernardo. Embora claramente fosse um pouco mais magra e andasse com refinadas roupas, belas joias, destacando-se um belíssimo anel de diamante cuja pedra era um círculo, e um penteado puxando os cabelos para trás. A semelhança era impossível de não notar a despeito da foto desbotada: - Desculpe, não quis assustá-la, senhorita.
- Não me assustou, senhor. Eu imagino como se sente. Todos que me veem aqui dizem a mesma coisa – respondeu ela, fazendo as mãos do pianista tremerem de nervoso. Até a voz era idêntica. Seria possível que ela fosse um dopplegänger atrasado em cinco décadas? Não podia negar, no entanto, que ela era muito bonita. Tanto quanto a original...
- Por acaso você é parente dos Bernardo? Descende de algum dos irmãos de Paquita?
- Não. Apenas pareço com ela – o tom usado era bem estranho aos ouvidos do pianista. Era como se ela escondesse algo.
O músico confessou a si mesmo que ver alguém tão parecida com a defunta naquele túmulo lhe era espantoso. Depois, depositou as flores e ali orou um pouco, vendo-se repentinamente triste e ao mesmo tempo aliviado. Naquela altura, a Argentina estava no pior dos períodos. Recordou-se de quando tinha estado preso. Havia sido um tempo negro. E agora o era, de novo. Pensou que talvez tivesse sido melhor daquele modo. Duvidava que Paquita fosse gostar daquilo. Era uma moça muito bondosa, dona de uma sensibilidade ímpar. Um ser humano marcante e extraordinário.
Isso se ele soubesse que ela estava ali bem à frente dele.
Paquita, já se afastando da própria tumba, pôde ler os pensamentos que corriam a mente de Osvaldo. Compreendia. Realmente, não era fácil suportar aquelas coisas sem quase nada poder fazer. Leopoldo, no entanto, lhe dizia que aquilo era assunto humano. Eles não podiam se envolver. Ordens expressas do Rei Vampiro, cuja identidade era desconhecida, sobre se envolver em assuntos que não lhes diziam respeito. Entretanto, isso não queria dizer que eles não davam um jeito de atrapalhar os desgraçados. Faziam, com certeza. Pelo menos ela. Especialmente porque Mariano Amenábar estava muito mais envolvido com os militares do que deveria. Andava financiando operações deles.
Aquele almirante imperial era um desgraçado amaldiçoado. Não acreditava que ele era capaz de tantas atrocidades em nome de tirar o poder de seu amado. Leopoldo Belmondo o tinha por merecimento. Contudo, a bandoneonista estava certa de que havia algo muito mais complicado por trás de apenas querer o Priorado do Rio da Prata. Talvez fosse relacionado com o segredo que o vampiro-prior guardava a sete chaves. Nunca soube o que havia naquele cofre cuidadosamente selado no sótão. Nunca perguntou. Havia descoberto por acaso a história. Achou mais sábio deixar para usar aquilo quando fosse o momento certo.
Era preciso, porém, descobrir o que Mariano planejava naquele momento. Era importante impedi-lo de agir antes que as coisas piorassem. Sabia que a criatura adorava tango instrumental. Não, certamente ele não cairia em algo tão óbvio. Seus pensamentos foram interrompidos quando um rapaz claramente drogado apontou-lhe uma faca e pegou-a pelo braço: - Passa tudo, lindinha! Senão morre!
- Pare com isso, seu frangote! – Pugliese tentou espantá-lo com a bengala que trazia consigo.
- Eu posso lidar com ele, Osvaldo, obrigada – respondeu a senhorita do túmulo muito séria. O pianista não compreendia aquele tom estranhamente íntimo usado, quando a viu desarmar o meliante com inacreditável facilidade. Pôs a mão na boca, impressionado. Ainda mais ficou quando a voz dela assumiu o tom de irrecusável ordem: - Vá embora e nunca mais tente assaltar ninguém. E pare com as drogas, elas o matarão.
O rapaz andou na direção oposta sem ao menos olhar para trás. O músico ainda não acreditava no que tinha visto. Até mesmo andava pensando em coisas estranhas sobre filmes de terror...
- Como diabos você fez isso? Quem, ou que, é você?
- Oras, conheço técnicas de defesa pessoal e hipnose – respondeu ela tentando evitar que seu antigo parceiro musical descobrisse sobre ela.
- Você vá me desculpar, mas nem mesmo o melhor dos lutadores faria o que vi. E menos ainda hipnose é desse jeito, pelo menos até onde sei. Além do mais, você parece muito com ela. E é tão clara e pálida. Tem unhas tão longas – disse ele apavorado enquanto ela parecia tentar arrumar algum contra-argumento.
Lembrava-se de quando havia visto, sem querer, um cadáver. O tinha encontrado próximo ao teatro onde estava executando um concerto de piano. A pessoa tinha uma marca dupla no pescoço. Tinha sido secada do sangue. Recordou de quando os coveiros da Recoleta, onde o pobre morto tinha sido enterrado, comentavam sobre o que chamavam de “vampiros”. Descreviam-nos como claros e pálidos, de unhas longas e olhos hipnotizantes, além de frios como gelo. Foi quando, tão rápido quanto pôde, aproximou-se e pegou-lhe o braço descoberto. Largou-o sem piscar. Aliás, há alguns minutos ele sequer piscava de tanto pavor...
- Meu Deus! Não pode ser! Você está... morta! Está... morta!
- Claro que estou – respondeu ela em tom sério para depois dizer-lhe assumindo algo quase macabro na voz: - Há 55 anos. Mais precisamente, hoje.
- Paquita! Não pode ser! É você! – gritou ele quase caindo para trás. Para em seguida começar a lacrimejar em razão da prolongada falta de piscadas e depois respirar fundo para recuperar o ar repentinamente faltante. Estava velho demais para levar um susto daqueles! Se ela estivesse com fome, ele realmente não poderia lidar! Aquele ladrão franguinho não tinha conseguido sequer defender-se sendo novo, quanto mais ele, já idoso. Foi quando ela aproximou-se. O pianista estava certo de que ela o mataria para alimentar-se. Estava, porém, errado...
- Sou eu, meu muchachito. Senti a sua falta, sabia? – disse ela ajudando-o, pois Osvaldo estava quase caindo. Ele surpreendeu-se. Ela era capaz de chorar. Prantear sangue. De felicidade. Por revê-lo após 55 anos.
- Tem certeza de que ainda sou aquele menino? – perguntou ele ainda assustado por descobrir tal coisa enquanto a via limpar as lágrimas rubras.
- Para mim ainda é. Me lembro de todos os momentos que juntos passamos – sorriu ela de uma forma que comoveu o músico, que respondeu-lhe ainda um tanto incompreensivo: - E sua família? E seus amigos? Como pôde fazer isso com eles?
- Eu não tive como dizer-lhes a verdade. A força de nós vampiros provém dos humanos não acreditarem em nossa existência. Você, porém, continua com a mente tão afiada quanto me lembro – respondeu ela suspirando.
- Acho que entendo. A sede pelo sangue. As pessoas que morrem por causa dela. Era possível que eles não fossem suportar ver algo assim – Osvaldo a olhava um tanto horrorizado quando ouviu uma resposta: - Eu não mato pessoas, se é isso que pensa. E sim, pensei em trazer minha família comigo, mas eles não quiseram. Eu percebi. Estavam felizes com suas vidas. Não tive o direito de tirar-lhes isso.
- Então por que você... aceitou? – Pugliese observava com tal atenção que o cemitério parecia não mais existir.
- Porque amo o vampiro que me mordeu. Leopoldo é meu marido desde o dia em que pudemos ficar juntos. Inclusive faremos 55 anos de casados no dia do meu aniversário mortal – disse ela com certa felicidade.
- O amor é estranho. Muito – olhando em volta, imaginou quantos ali enterrados seriam na verdade cadáveres redivivos. Ele jamais imaginaria que eram tantos.
- Não é estranho. É lindo. Leopoldo poderia ter escolhido qualquer outra muito mais bonita que eu, mas foi a mim que ele quis. E confesso que nunca me achei atraente – disse ela enquanto caminhava junto do antigo companheiro de orquestra.
- Me lembro de quando você usava os paletós e gravatas de um dos seus irmãos. Agora eu a vejo parecendo uma dama da alta sociedade. Roupas finas, joias, sapatos de grife. Você já é tão bonita, conseguiu ficar ainda mais – riu ele agora parecendo mais acostumado àquela presença.
- Não foi apenas a aparência que mudou. Também foi o interior. Viver tanto tempo faz com que vejamos as coisas de outro modo e nem sempre ele é agradável. As pessoas mudam conforme o tempo passa, Osvaldo. E nem sempre mudam para melhor – disse ela com repentina tristeza.
- Estou certo de que seu caso foi para melhor. Recordo de como era justa e amorosa – respondeu ele a sorrir.
- Leopoldo sempre me diz que tenho de ser melhor a cada dia. E ele parece não se importar com minha teimosia absurda – a vampira riu levemente, cuidando para que Pugliese não visse os incisivos que teimavam em sair.
- Paquita, desculpe por isso, mas preciso ir, está ficando tarde. Não acho que ficar na Chacarita agora seria seguro. Quero... conversar mais com você em outra oportunidade – disse ele para em seguida despedir-se.
- Tudo bem. Boa noite, Osvaldo. Se precisar de mim, me chame. Poderei ouvi-lo – ela sorriu enquanto ele se afastava pensativo sobre o que vira. O pianista se perguntava como a humanidade lidaria com aquilo caso descobrisse tal coisa. Bem? Mal? Duvidosa? Talvez nunca soubesse a resposta. Achou melhor não saber.
...
Osvaldo Pugliese questionou-se porque tinha aceitado aquela proposta. Por Deus, só podia estar louco de achar que tal coisa daria certo. Paquita o convencera, em uma das conversas tidas naqueles seis meses, a ajudá-lo a descobrir os planos malignos de certo Mariano Amenábar, inimigo do marido dela. Era verdade que o monstro amava tango instrumental, mas achava difícil ele cair em tal coisa. No entanto, tentar nada custava. Achou que ela merecia tal ajuda. Ninguém devia pagar o preço da ambição de uma criatura maligna.
Preparava-se para o concerto daquela noite. Sabia que estava arriscando mais que só a vida. Sua filha e neta também. Rezou para que tudo desse certo naquela noite. Se Paquita havia lhe explicado bem, ele estaria combinando com seus aliados os próximos passos de seus planos horrendos. Estaria com um aparelho mágico de captar vibrações vampíricas. As conversas mentais de Mariano seriam captadas e transmitidas para um gravador instalado em uma passagem secreta selada que ele não seria capaz de detectar.
Foi surpreendido pela presença de alguém no camarim: - Quanta honra, Pugliese. Achei que não o veria por aqui tão cedo.
- Pela Santa Mãe de Cristo, não me assuste! – exclamou ele quase pulando da cadeira aonde ajeitava a fatiota.
- Este lugar é propriedade minha, sabia? Mariano não sabe o que o espera daqui a um tempo – a pessoa sorriu e Osvaldo sentiu a gravata como a sufocá-lo: - Eu reconheceria seu rosto em mil quilômetros de distância. Você também é um... deles?
- Não te parece óbvio? Juro que estou honrado de vê-lo, amigo. Espero que não esteja temeroso – o revelado vampiro bebia o conteúdo de uma garrafa de cor escura.
- Suponho que isso na sua boca é... sangue, señor Magaldi – o pianista sentiu os nervos tremerem ao ver os lábios dele pintados com algo vermelho.
- É nosso alimento. Não vivemos sem isso. Esse precioso líquido faz com que possamos exercer plenamente nossos poderes. Não é fascinante, señor Pugliese? – ele dizia displicente enquanto o músico sentia o nervosismo chegar a pontos alarmantes. Tremia dos pés a cabeça. Não queria nem imaginar que coisas vampiros faziam.
“Pare de tremer, homem. Você já esteve até preso!”, pensava Osvaldo consigo mesmo na tentativa de espantar o nervosismo. Logrou o desejado ao perceber-se respirando fundo e sorrindo para Agustín Magaldi: - Você tem bom gosto para locais, amigo. Continua cantando ou sua voz está muito diferente?
- Minha voz continua quase a mesma, exceto que agora eu sou um tenor mais apurado. A ópera sempre me fascinou, imagino que você saiba – respondeu ele para depois olhar o relógio: - Cinco minutos.
- Estou praticamente pronto. E o tal Mariano já chegou? – Pugliese estava ansioso para acabar logo com aquilo.
- Sim, está maravilhado que você tocará somente para ele e seu grupo. Admira sua técnica e talento, mas nunca o viu ao vivo – riu Agustín decerto ansioso com alguma coisa que o músico não conseguia imaginar.
- Antes de tudo, preciso perguntar: você não se sente solitário por conta dessa vivência tão longa? – o idoso músico não conseguia imaginar-se naquela situação mesmo ela parecendo tão tentadora.
- Imagino que Paquita lhe disse sobre nossa força provir da descrença dos humanos em nossa existência. E que não temos o direito de interferir nas escolhas dos nossos entes queridos – respondeu ele tirando um cigarro do bolso e acendendo-o para depois continuar em tom entristecido: - Também quis trazer meus amados comigo, mas não pude. Não achei certo condená-los a algo que talvez não desejassem.
- Mas você não tem uma... noiva ou algo assim? – o mortal baseava-se no que tinha ouvido sobre alguns vampiros terem incontáveis mulheres à sua disposição.
- Sou casado, ainda que meu nome seja falsificado no registro. Completamente apaixonado pela minha Rebeca – respondeu ele dando uma pequena tragada no cigarro aproveitando-se da janela aberta.
- Espero que isso diminua a sensação de vazio. Talvez eu jamais consiga ter uma vida assim. Não é para mim – o velho pianista nunca tão ardentemente havia agradecido pela vida tida. Em comparação, achava melhor morrer velho e tranquilamente em sua cama ao invés de viver chupando o pescoço das pessoas sem nunca poder tocar o Astro-Rei. Deu-se conta do quanto amava a claridade e o sol que a trazia.
- Não há vazio quando se ama, Osvaldo Pugliese – respondeu ele olhando-o com firmeza.
O mortal perguntou se vampiros realmente amavam. Se o coração não batia, como podiam amar ou chorar? Era possível tal coisa? Tinha visto sua antiga maestrina chorar, mas não compreendia como isso ocorria. Perguntas e mais perguntas que ele achou melhor ignorar porque estava quase na hora do concerto. Estava pronto para dar uma de James Bond. Estaria equipado com uma escuta capaz de detectar vibrações sobrenaturais e ajudando sabe Deus quantos vampiros a impedirem outro de cometer atrocidades ainda maiores do que as sabidas até ali. Sentia-se temeroso, mas tinha a certeza de estar sendo protegido por Paquita.
Ouviu seu nome sendo anunciado pela apresentadora do local. Entrou ao palco sob uma chuva de calorosos aplausos de criaturas frias como as geleiras dos Polos. O pianista reconheceu a descrição que Paquita lhe dera do vampiro de “apellido” Amenábar. Jurou estar vendo uma cópia quase perfeita daquele ator alemão louco tão odiado por vários. Exceto pelo cabelo ruivo alaranjado pontuado por uma pele levemente amorenada, o que indicava provável descendência de mouros, embora os olhos fossem azuis como os da pessoa lembrada.
Começou com duas de suas músicas mais lembradas até ali: Recuerdos e La Yumba. A execução de ambas arrancou aplausos ainda mais barulhentos dos vampiros, causando inacreditável cacofonia no salão. Deus, seria possível aquele ruído aumentar ainda mais? O pianista esperava o eco parar para que pudesse executar outros sucessos instrumentais e até alguns cantados com a ajuda da senhorita esperando para entrar no palco.
Foi quando percebeu que sua concentração tinha de ser ampliada ao dobro, pois estranhos ecos chegavam aos seus ouvidos. O aparelho mágico camuflado em sua roupa estava ativo. Eram os pensamentos de Amenábar e seus aliados, decerto combinando coisas sinistras. Concentrou-se maximamente e logo executou mais uma música. Foi absurdamente aplaudido mais uma vez e sorriu de volta aos que o aplaudiam: - Muito obrigado, senhores. Sinto-me honradíssimo ao tocar para um grupo tão seleto.
- Nós é que temos a honra, caríssimo – disse Mariano abrindo um sorriso enorme enquanto os pensamentos dele e dos aliados era transmitido para o aparelho. Osvaldo horrorizou-se com a capacidade daquela criatura de sorrir enquanto planejava atrocidades capazes de comparar-se às de Hitler ou Stalin. Também se perguntou como era possível Amenábar não notar que estava sendo monitorado. A bruxa que criara o aparelho devia ser muito habilidosa para enganar alguém decerto tão poderoso.
A apresentação havia durado pelo menos duas horas e meia, descontando o intervalo. A voz da cantora que havia auxiliado era muito bela. Comparável a de Tita Merello, Libertad Lamarque, Sabina Olmos ou Nelly Omar na opinião do idoso espião que tocava. Após o término, fora efusivamente cumprimentado pelos presentes, que apertavam fortemente suas mãos parabenizando-o por tanto talento. Especialmente Mariano Amenábar, desejando em alta voz vê-lo tocar novamente. Retribuiu os cumprimentos com um sorriso, embora o mesmo fosse forçado, pois havia visto coisas terríveis enquanto tocava. Questionou-se sobre como não perdera o fio da meada.
Após despedir-se das terríveis criaturas, pôde enfim respirar com alívio. Estava ansioso para ir à sua casa. Queria dormir e esquecer aquela perturbadora noite. Só esperava o momento de livrar-se daquele aparelho. Desejava esquecer as coisas ouvidas através daquilo. Que os vampiros fizessem qualquer coisa com aquelas informações. Por favor, não o envolvessem nisso. Para ele, já bastava.
- Você está bem, mi “chachito”? – Paquita sentia-se culpada por expor Pugliese a tal situação.
- Estou péssimo. Quero tirar esse aparelho e sair daqui de uma vez por todas – ele a olhou muito sério.
- Não quer... estar comigo para sempre? – perguntou ela querendo compensá-lo do melhor modo pelo feito.
- Desculpe, mas não. Tenho uma filha, uma neta e amigos. Não tenho coragem de abandoná-los. E nem de abandonar a beleza de ver o momento do amanhecer. Descobri que não sou capaz de suportar essa vida. A minha já está de bom tamanho, Paquita – respondeu ele sorrindo com a certeza da escolha certa.
- Por favor, não quero... – ela interrompeu-se aos prantos e depois o olhou com tristeza: - Perdê-lo de novo.
- Você me disse que viu sua família feliz seguindo em frente. Pois é isso que vou fazer até quando Deus quiser. Tenho tudo e faço aquilo que amo. É suficiente para mim, minha amiga – respondeu ele aproximando-se e tomando-lhe as mãos:
- Entenda, por favor.
Ela o abraçou: - Eu sei, Osvaldo. Estou triste agora, mas, vê-lo feliz já me alivia muito.
Um sorriso dele foi a resposta. Enfim foi livrado do aparelho mágico. A gravação estava segura nas mãos das pessoas certas. Ele estava certo de que Leopoldo e seus aliados impediriam os planos de Mariano dentro em breve. Logo foi levado à sua casa por ela. Despediu-se dela com um longo abraço, intensamente retribuído.
Para Osvaldo Pugliese, aquela noite havia sido incomum. Inesquecível. Perturbadora.
Esperava jamais passar por aquilo novamente enquanto vivesse.
Os quinze anos seguintes agradecendo por ainda ser capaz de ver o amanhecer e a claridade.



Espero que apreciem esse conto especial de Fim de Ano. E conto com os comentários e sugestões de vocês. :mrgreen:

*: Sacaram o trocadilho? :lol: