A estrada para a perdição – Parte 1
- Justo agora o carro tinha que dar defeito! – exclamou o rapaz que dirigia. O veículo inesperadamente parara. E um desagradável cheiro de óleo queimado indicava problemas sérios.- Eu te disse que nós deveríamos ter pedido o do meu pai emprestado, Lauro. Esses negócios baratos demais sempre acabam saindo muito errado. Agora, tentamos procurar ajuda em volta ou deixamos o carro aqui e saímos a pé? – a jovem que o acompanhava estava injuriada com a situação.
- Eu realmente não sei. Está quase anoitecendo. Sair a pé não parece a melhor opção, mas também ficar aqui parados não vai ajudar em nada, Doriana. Será que tem alguma morada aqui por perto onde possamos buscar ajuda? – o jovem suspirou observando a parte de trás com bagagens. O casal estava indo para a lua de mel planejando ter dias tranquilos e felizes.
- Vamos ter que arriscar e procurar. Se não conseguirmos, teremos que dormir ao relento ou andar o máximo que pudermos – respondeu a moça certeira.
O casal tratou de pegar as malas que levava consigo. Levá-las seria trabalhoso, mas deixá-las daria margem a ladrões. Foram para fora da estrada. Andaram um bom pedaço tentando encontrar alguma morada. O peso das malas os fazia parar a cada medida de alguns metros.
O bosque fechado não era lá muito convidativo, mas lá entraram porque onde eles estavam nada havia. Muitos metros depois da entrada do bosque, os dois surpreenderam-se ao ver uma mansão...
- Quem terá construído essa casa?! Nunca imaginei que haveria algo assim aqui! – exclamou Lauro de boca aberta.
- Pode ser mal assombrada! Não acho que alguém more aqui – falou Doriana assustada.
- A senhorita engana-se. Eu moro aqui – uma voz masculina surgiu quase literalmente do nada. O casal gritou e largou as malas ao ver quem falava...
- Lauro, você viu o que eu vi?!
O jovem marido nada conseguiu dizer.
Ele riu discretamente. Carregava consigo uma cesta de rosas vermelhas. Sorriu: - Procuram ajuda?
- Nosso... – o rapaz não conseguia falar tamanho o susto experimentado.
- Estávamos indo para o interior em lua de mel, mas nosso carro quebrou na estrada – respondeu a moça com espanto. O homem que com eles falava era idêntico ao famoso cantor falecido no ano anterior. Exceto por alguns detalhes. Uma mecha branca destacando-se no cabelo escuro como a noite. Leve palidez que lhe dava aspecto de ser fantástico. E o que parecia ser uma coloração levemente diferente em uma parte do rosto. Além das unhas muito estranhas para um homem: compridas e pontudas.
- Recém-casados então – novamente ele sorriu e disse em seguida: - Fiquem à vontade para hospedar-se aqui. A cidade não fica muito longe. Podem ir até lá durante o dia se dormirem cedo. É pelo menos três horas e meia de trajeto a pé e pelo menos uma de carro pelo que eu sei. Vocês teriam ido se soubessem, mas não penso que seria seguro irem com a noite já alta.
- Pensamos nisso, mas achamos melhor não fazê-lo. Temi pelas nossas vidas. Ladrões sempre estão em busca de vítimas – disse o rapaz enfim recuperando-se do susto.
- Compreendo. Venham comigo. Há quartos de sobra e poderão acomodar suas bagagens – disse ele indicando o caminho para o casal que novamente segurava as malas.
- Tudo o que podemos fazer é ter paciência para carregar malas durante um trajeto tão comprido ou esperar uma carona – disse Lauro sentindo-se cansado.
O anfitrião abriu a grande porta da mansão. Largou a cesta de rosas sobre um balcão e logo acendeu um castiçal...
- Perdoem-me, não há luz elétrica aqui.
O casal nada disse. A mansão agora iluminada pelas velas era impressionante. Refinadamente mobiliada e bastante ampla. Entretanto, aquela casa parecia ocultar algo nos seus cômodos. Uma estranha sensação apoderava-se do casal. Ambos não conseguiam tirar os olhos do homem que oferecia ajuda. Um bolo surgiu nas gargantas de ambos. As palavras faltaram.
- Os quartos ficam no andar de cima. Subam e descansem – sorriu ele para Doriana perguntar: - Como se chama?
- Charles Romuald, senhorita. E vocês dois? – respondeu o homem tão sorridente quanto antes.
- Lauro e Doriana. ‘Muchas gracias por la ayuda’ – ele ensaiou um sorriso no meio da tensão.
- Muito prazer em conhecê-los – disse ele alegre e logo os olhou longamente: - Eu costumo apreciar boa companhia.
O casal teve a clara impressão de uma conotação bem maliciosa naquela última frase.
Os dois logo subiram para acomodar as malas. Usaram o banheiro do corredor para um bom banho. Descansaram pelo menos duas horas. Algum tempo depois, estavam mortos de fome. Desceram para perguntar se havia o que comer quando viram, em um cômodo adjacente ao saguão, o anfitrião arrumando cuidadosamente a mesa. Surpreenderam-se ao perceber que ele era o único que ali vivia, dado o que fazia. O cheiro não deixava dúvida que alguém estivera cozinhando...
- Nossa! Você... fez isso? – perguntou a esposa.
- Sim, a pessoa que mora comigo possivelmente estará de volta ainda hoje. Mas como vocês estão aqui, tive de cozinhar mais quantidade porque não seria educado deixar os hóspedes famintos – respondeu Charles enquanto ajeitava os talheres.
- Nossos estômagos agradecem – o marido sorria como se estivesse há anos sem comer.
- Você não vai jantar? – Doriana observou e logo depois questionou: - Então...?
- Já jantei – o anfitrião sorriu e logo respondeu: - O médico que cuidou de mim após eu sofrer um acidente na estrada.
Os dois olharam-se surpresos ao ouvir aquilo. Logo, porém, sorriram agradecendo pela excelente acolhida. Jantaram calmamente e Lauro perguntou logo após tomar um copo de vinho: - Um acidente? Isso seria a causa dessa cor um pouco menos clara de um lado do seu rosto? Sendo filho de médico, é fácil notar.
Charles olhou-o e respondeu, agora um bocado sério: - Sim, infelizmente eu tive o azar de sofrer um acidente grave aqui próximo. Sobrevivi, mas meu corpo ficou muito ferido. Ainda estou me recuperando, mas estou muito melhor do que há pelo menos um ano eu estava.
“Um ano?”, pensou Doriana apavorada. “Coincidência?”, ela internamente tremeu, mas logo se acalmou. Afinal de contas, o acidente aéreo havia matado o cantor Carlos Gardel. O caso de Charles Romuald tinha sido um acidente automobilístico. Pelo jeito dos mais graves, considerando o comentário do marido. Um ano de recuperação não era pouca coisa. Recordava-se que o pobre José María Aguilar ainda estava convalescente. Com pelo menos dois, talvez três, dedos faltando em uma mão e a carreira encerrada, pois já não podia tocar. Para tornar tudo mais trágico, estava cego.
A semelhança entre eles, no entanto, era grande demais para ser ignorada. Lauro disse: - Fico feliz que esse médico tenha conseguido ajudá-lo. Nem parece, se observar a alguma distância, que você esteve tão mal. Esse homem é um que quero conhecer.
- Possivelmente seu pai conheça o Dr. Volgin – respondeu ele aproximando a taça de vinho dos lábios de uma forma algo sedutora.
Doriana e Lauro olharam-se surpresos. Sim, eles muito ouviram falar do hematologista Miguel Ângelo Volgin. Adepto de alguns métodos europeus considerados muito obscuros pela comunidade médica tradicional. Que, porém, funcionavam com os pacientes, segundo os próprios, dizendo que médico melhor não havia. Os dois arrepiaram-se imaginando se aqueles mesmos métodos não tinham sido usados com Charles. Não ousaram perguntar, mas ele pareceu saber a dúvida estampada nos rostos: - Foi graças a isso que não fiquei deformado pelo resto da vida. No entanto, está sendo uma recuperação difícil.
- Nossa! – exclamou Doriana.
- Bom saber disso. Alguns médicos estão pensando em abrir uma sindicância para investigar os métodos usados pelo Dr. Volgin. O seu caso poderia... – o rapaz disse quando o anfitrião cravou violentamente uma faca na mesa: - O que você disse?!
- O que o senhor ouviu – a jovem esposa de repente parecia reconhecer a familiar voz do próprio Gardel.
- Quem pretende? – o tom de voz inesperadamente gélido dele assustou o casal.
- Meu pai só comentou, ele não sabe quem, mas acha que essa história vai ser iniciada pelo Dr. Cruz y Malta. Não é exatamente um segredo que esse médico não gosta muito do Volgin. Eu sinceramente não compreendo o motivo. Considerando o que ele fez por você e tantos outros, é inexplicável – o rapaz suspirou.
- Isso tem apenas um nome: inveja. Todo mundo sabe que o Volgin é o melhor no que faz. E como ele ajuda todo mundo que é pobre sem cobrar um centavo! – o casal viu-se ouvindo a voz de Gardel. “Como?!”, pensaram eles agarrando instintivamente a mão um do outro abaixo da mesa.
- Nós entendemos, mas, a comunidade médica tem seus motivos. Não concordo, mas também não julgo – Doriana levantou-se da mesa.
- Só espero que isso não ocorra. Não posso compactuar com tal absurdo. Olhe o Charles Romuald. Se não fosse pelo Dr. Volgin, ele não estaria recuperado e muito menos vivo. Ele realmente merece ser investigado apenas por usar métodos alternativos que claramente já ajudaram pessoas? Ora, isso é no mínimo estupidez – o jovem esposo disse com convicção.
- Eu não colocaria melhores palavras – disse o anfitrião voltando a sorrir.
Os dois agradeceram a acolhida, mas precisavam dormir, pois estavam cansados após aquele dia movimentado.
Já sozinho na imensa sala, Charles Romuald, na verdade o nome nunca olvidado, nada feliz encontrava-se com a possibilidade de seu querido Miguel sofrer algum revés...
- Enquanto eu viver, não permitirei que ninguém prejudique ou machuque Miguel!
Foi então que ele decidiu-se ir até a cidade. Sabia, através dos jornais trazidos por Volgin, que o Dr. Cruz y Malta andava por Medellín a dar palestras. Vestiu-se com todo o apuro que o caracterizou durante toda a sua carreira anterior. Penteou os negros cabelos com igual dedicação. A imagem no espelho dizia-lhe que ele voltara, pelo menos naquela noite, a ser Carlos Gardel. Sorriu ao ver o resultado final. Achou que a noite seria muito boa.
Andou pela estrada deserta com toda a rapidez que sua condição lhe permitia. O escuro da noite já bem alta que cobria a cidade facilitou seu deslocamento. Encontrou o hotel citado em uma das publicações. Subiu pela parede esquerda ao perceber considerável movimento ali próximo. Apesar de ser mais de uma da manhã, muita gente andava nas ruas em busca de diversão noturna. Fosse nos bares, cabarés ou com as prostitutas da rua. Admitiu: era impressionante poder fazer aquelas proezas físicas. Era uma sensação única de poder.
O quarto em questão ficava no último andar. Gardel silenciosamente entrou pela janela ainda aberta. Escondeu-se no canto mais escuro do quarto. O homem estava no lado oposto, concentrado em algo. Ele parecia escrever. Sua apurada visão lhe disse que era uma nova palestra. Ele também pôde ver o que parecia ser um rascunho de alguma outra coisa. Possivelmente os motivos para abrir uma sindicância para investigar Volgin. Observou-o trabalhar de onde estava. Não iria permitir que seu amigo fosse prejudicado pela inveja de outrem. Aproximou-se silenciosamente e pegou o rascunho. Leu-o.
Surpreendeu-se ao ler o que ali estava escrito. Apesar do que Lauro lhe dissera, o médico queria abrir essa sindicância na tentativa de conhecer melhor os métodos de Miguel. Com a intenção de usá-los. A leitura não lhe dera nenhuma indicação de quais eram as intenções dele com isso. Ai dele se tentasse roubar os feitos de seu amigo. Riu quando pensou em assustá-lo seriamente. Afinal, prevenir era melhor que remediar, no final.
- Acaricia mi ensueño... – ele começou a cantar uma de suas mais famosas canções. O homem sentado à escrivaninha congelou ao ouvir aquela familiar voz tão próxima. E repentinamente tão assustadora. Não havia nenhum 78 rotações no quarto, então...?! Ele não conseguia mexer-se. Aquela voz cantando aquela canção depositava doses de horror em seu peito. Tão pesadas que seu corpo parecia estar enterrado em um bloco de concreto.
- Quem...?! – apenas quando a música encerrou-se ele pôde dizer algo, mas não pôde continuar. Porque uma mão gelada agarrou-lhe por trás: - Diga-me suas intenções ou você morrerá.
- Do que...?! – Cruz y Malta tentou completar a pergunta, mas sentiu-se sufocado: - Dr. Volgin é meu amigo. Tente prejudicá-lo e rasgo sua garganta para beber seu sangue. Devo dizer, o cheiro muito me agrada.
- Me... solte. Só assim... posso... falar – disse ele desesperado. O hálito frio lhe arrepiava o corpo todo. Sentiu o aperto menos sufocante, mas ainda sim forte...
- Eu não tenho intenção alguma de prejudicar Dr. Volgin. Confesso que, até algum tempo atrás, eu não aprovava os métodos dele, mas, considerando o que ouvi dos pacientes que ele atendeu, mudei de ideia. Pensei em abrir essa sindicância de modo a conhecer melhor esses métodos. Torná-los conhecidos para que todos possam usá-los. Comprová-los. Quem sabe até fazer a comunidade médica aceitá-los melhor e poder curar os pacientes com mais rapidez. Eu não vejo nada ruim nisso.
- Espero, para o seu bem, que você esteja sendo sincero. Não é preciso abrir sindicâncias para investigar. Apenas converse com o Miguel e ele certamente vai ter dar as instruções necessárias. Ninguém deveria te dizer o que você tem que fazer. O senhor já é bem grandinho para lidar com tudo sozinho – respondeu ele sério.
O médico suspirou: - A comunidade médica tem regras que eu não posso simplesmente ignorar. Embora eu esteja convencido, não há comprovação científica dos métodos do Dr. Volgin. Por mais que os pacientes digam coisas positivas, só a palavra deles não é suficiente para alguns médicos.
- Fale com os outros pacientes. Peça amostras e fichas médicas. Não é difícil. Miguel pode te ceder o que você precisar e até mesmo eu posso comprovar isso – disse Gardel soltando o médico, que estranhou aquelas últimas palavras: - Comprovar?
O vampiro acendeu a luz do quarto após afastar-se. Cruz y Malta quis gritar, sair correndo ou qualquer outra coisa, mas congelou outra vez. Apavorado era uma palavra pouco adequada para definir o que sentia. Podia ser um sósia, mas aquela aura charmosa, aquele apelo, aqueles olhos, aquele sorriso. Era ele. Transcendendo toda e qualquer expectativa humana...
- Você não é humano, é? Humanos...
- Alguns humanos que sofrem de um problema chamado hematomania fazem isso. Eu? Me tornei um vampiro – ele aproximou-se novamente e disse: - Eu bebo sangue porque preciso, é de onde eu tiro tudo o que tenho de poderes. Que eu mal sei quais são. As suas veias ou as de qualquer outro humano me alimentam todas as noites. Se bem que... vai ser a primeira vez que vou morder alguém.
- Vai... me matar? – o médico afastava-se se recusando a acreditar no que via. Dizia: - Como você... conseguiu? Eu ouvi tantas coisas. Vi... algumas fotos.
- Eu mal sei sobre isso. Envolve o sangue de outro ser vampírico correndo por meu corpo por mais de anos. O responsável nada me disse ainda. Eu sequer o vi. Tudo o que sei sobre minha condição foi por leituras. Volgin é um estudioso dessas coisas. Ele usou os métodos que você está investigando, mas eu sou um caso diverso, ainda que parecido – o vampiro pareceu ignorar totalmente a pergunta.
Cruz y Malta viu-se enlaçado naquele olhar mortalmente rubro. Sentiu a dolorosa carícia em seu pescoço logo em seguida. De repente, porém, ela já não doía tanto. Percebeu-se deliciado com aquilo. Toda a vergonha, receio ou qualquer outra coisa sufocante foi-se com um sopro. O prazer daquele ato não podia ser descrito com palavras. O doutor enlaçou-o em um abraço, sentindo a prazerosa vagareza daquele beijo. Como nunca antes havia provado tal manjar? Percebeu-se enfraquecendo. Em seguida Gardel soltou-o, com pequenos filetes saindo dos cantos daquela linda boca...
- Eu não vou te matar. Só queria entender a sensação. É melhor do que eu pensava.
- As suas palavras são minhas. Você...? – ele dizia quando foi interrompido: - Melhor você colocar um curativo, comer algo e dormir. Você vai levar dois dias para se recuperar totalmente. Não vou te deixar doente. E você tem seu trabalho, não posso impedi-lo.
O médico nada falou em resposta, mas disse: - Meu nome é Arquimedes, como o filósofo grego. E sou egoísta o suficiente para jamais dividir esse segredo com alguém.
Gardel riu um bocado grato por aquela atitude inesperada. Despediu-se dele com um beijo normal, sem mordidas ou feridas. Aquela noite estava sendo bem divertida. E ficaria ainda mais agora, com uma pequena missão. Havia prometido tal coisa a si mesmo logo depois de ter visto Miguel ajudar a jovem Anya a fugir com seu noivo para uma cidade distante. Ela enfim podia viver tranquilamente ao lado de seu amado, que prontamente viera buscá-la ao saber de sua fuga. Ainda, porém, havia um obstáculo: o antigo chefe da jovem ainda procurava por ela. E não parecia disposto a desistir fácil de fazê-la novamente escrava dele.
Já na rua vazia, teve a certeza de que estava pronto para usar os poderes que já conhecia. E quem sabe descobrir outros.
Foi quando uma reconhecível voz, ainda que soasse como a de uma criança macabra, ecoou no meio da rua:
- Você quer brincar comigo?
Carlos Gardel de repente viu-se congelado de espanto. Não ousou olhar para trás. Apenas correu o mais que pôde.