La Cenicienta - Parte 1
A situação só não estava pior porque o advogado do pai havia interferido de maneira inesperada. Só não estava totalmente submetida aos caprichos da madrasta e suas filhas por milagrosa sorte. No entanto, moraria com ela até ter 21 anos e isso por si só já era muito desagradável. Porque elas definitivamente não se davam bem.Só estava na universidade de Ciências Contábeis graças aos rendimentos do dinheiro da mãe. A jovem era uma das pouquíssimas mulheres nessa situação. Pois a maior parte delas ainda dedicava-se ao lar e à família. O caso da fortuna deixada pelo pai ainda estava incerto. Há três anos ele desaparecera após o navio “Czarina Catherine” naufragar no caminho para a Inglaterra. Sem corpo, não se sabia se ele estava vivo ou morto embora a primeira possibilidade fosse muito remota. E ele não havia feito testamento, o que deixava Elza Rohm como tutora da jovem Trinidad Rosa Nieves Lorens até que esta tivesse idade de cuidar da própria herança.
Elza era alemã. Viúva, com duas filhas, uma adolescente e outra adulta, quando se casou com Gerardo Nieves, pai da jovem conhecida como Rosita. Eles, porém, conheciam-se desde crianças. Rohm era a melhor amiga de Vivian Lorens e ambas o tinham como amigo em comum. Ele, no entanto, era pobre e casara-se com Vivian após ambos muito lutarem por tal união.
Ela voltara à Alemanha logo que soube do enlace por motivos familiares. Só regressou à Argentina um ano antes da Segunda Grande Guerra, quando Vivian ficou de cama após uma grave queda de cavalo. Rosita perdera a mãe meses depois em razão de complicações pulmonares. A então moribunda disse à filha suas últimas palavras: que sempre fosse bondosa com todos, lutasse por aquilo que acreditava e fosse sincera consigo mesma.
O pai anunciou o casamento com a amiga de infância dois anos depois. Desde essa época, Heidi, uma loira muito folgada, implicava com a filha do padrasto. Amélie, a mais velha, regressara da Europa pouco antes do fim da guerra, formada enfermeira padrão. Tratava-a com indiferente educação. Era uma morena muito alta, corpulenta e de intensos olhos azul-escuros. A convivência entre os cinco era tranquila a despeito de algumas discussões com a caçula de Elza e a seriedade muito assustadora, e incrivelmente calada, da outra. Ela, porém, azedara de modo considerável após o desaparecimento de Gerardo, em 1943.
Elza resolveu que, sendo responsável pela “guarda” de Rosita até os 21 anos, a faria trabalhar em sua própria casa. A jovem receou-se de tal coisa, não compreendia as razões. A alemã alegou que ela precisava aprender a dar valor às coisas. E que se por ventura casasse, tinha de saber cuidar decentemente de uma casa. Disse ser essa a condição para permitir duas coisas: que o advogado vivesse na casa com eles e ela fosse para a universidade. Ambos desejos de Nieves manifestados antes de desaparecer. Uma coisa por outra.
A madrasta sabia: duas garantias sempre eram melhores que uma. Embora ela não negasse que Alban podia ser um belo causador de problemas. Pois não lhe era desconhecida a grande afeição tida pela jovem e antes por Vivian. Ele, porém, sofria de gota e quase sempre estava sem poder caminhar devido às dores. O que facilitava muito as coisas para ela, não precisando colocar qualquer escuta em qualquer cômodo da casa. E Rosita era tão quieta que era como se não vivesse ali.
Rosita, por sua vez, tinha uma rotina estritamente colocada: as tarefas domésticas eram divididas entre a segunda e a sexta no turno da tarde. Pois na manhã ela tinha aula. O tempo livre ela usaria para estudar tudo o que precisasse para os trabalhos e provas. E fazer as compras quando elas fossem necessárias. Era compensada podendo sentar-se à mesa para comer com a família. Muitas vezes, porém, ela preferia comer em companhia do padrinho, pois nem sempre ele tinha condições de sair da cama em razão da gota na perna esquerda.
O advogado, por sua vez, nunca tivera qualquer apreço por Elza ou Heidi. No entanto, sentia profundo dó de Amélie, constantemente desprezada pela mãe por não ser tão bela quanto a irmã. Sempre teve a certeza de que alguma coisa estava muito errada na morte de Vivian. E no desparecimento de Gerardo. Nada lhe tirava da cabeça que ambos os fatos não haviam sido por acaso. Ele, porém, não dizia isso em voz alta porque não tinha prova alguma. E porque naquela casa as paredes tinham ouvidos.
Em perto do fim de tarde quando Rosita falou com Elza sobre precisar sair: - Tenho de buscar aquela pasta que meu padrinho usa na perna. Posso?
- Eu geralmente não concordaria com você saindo a essa hora porque você faz o jantar hoje. No entanto, Heidi foi ao cinema e Amélie está atacada das cólicas menstruais. E como não quero ver seu padrinho gemendo de dor a noite toda, eu permito que vá. Você, porém, não deve demorar. Considerando o tempo do trajeto de ida e volta do bonde, quero você em casa daqui uma hora e meia – a madrasta olhou a enteada rigidamente. Odiava não conseguir dormir e o barulho de Aldan era apenas um dos motivos.
- Estarei aqui até mesmo antes disso – respondeu ela imediatamente ao que a alemã assentiu.
Saiu para a parada. Pegou o bonde costumeiro que ia para a universidade. O sol recém havia se posto. Foram pelo menos quinze minutos de trajeto em razão do trânsito mais tranquilo. O mercado ficava a alguns metros de onde descera. Entrou no local, sendo imediatamente cumprimentada pela atendente, uma negra sorridente. Rosita respondeu alegre: - Como está? E a pequena Sancha?
- Cada dia ficando mais linda e inteligente – respondeu a mulher cujo nome era Juana. Ela logo disse: - Diga o que quer e irei buscar.
- Aquela pasta que meu padrinho usa na perna – respondeu a jovem a sorrir. Rosita, porém, encontrava-se triste ao pensar no pai desaparecido.
- Já vou pegar – disse ela para depois observar algo de tristeza na jovem: - O Gerardo deu grande azar quando se casou de novo. A sua mãe era muito melhor.
- Não discordo – Rosita entristeceu-se mais ainda ao se lembrar da mãe. Juana logo foi aos fundos buscar o pedido.
Quase no mesmo instante em que ela sumiu na porta azul de trás do balcão, alguém adentrou o local. Um homem. Mulato cuja pele era puxada para um forte tom moreno. Os olhos escuros. Traços expressivos indicando mestiçagem. Rosita nunca vira nada tão fascinante em sua vida. Ele não era necessariamente bonito, mas chamava atenção onde quer que passasse. Percebeu o olhar espantado da senhorita: - Você parece impressionada com minha figura.
- É que... é muito raro ver uma figura como a sua nestes lados – disse ela temendo acabar insultá-lo. Deus do céu, que voz tão... incrível ele tinha. Doce com algo gutural no meio. Um adocicado perfume masculino emanava daquele ser.
- Eu entendo – sorriu ele levemente para depois olhá-la: - Como se chama?
- Trinidad Rosa, mas todos me chamam Rosita – respondeu ela tentando esconder o nervosismo.
- As rosas não fazem jus ao quanto você é bonita – disse ele sorrindo quando Juana voltou com o pote: - O seu de sempre está lá nos fundos, senhor Thompson.
- Thompson – murmurou ela enquanto a atendente lhe entregava o objeto.
- Leopoldo, senhorita. É assim que me chamo – disse ele acenando para despedir-se e indo aos fundos logo em seguida.
Juana via-se empalidecida: - Por favor, eu te peço, não se aproxime dele nem brincando!
- Por quê? – a moça espantou-se com o tom apavorado da amiga.
- Não posso te explicar porque você não acreditaria, mas, pelo seu bem, não o deixe chegar perto! – a mulher murmurava com pavor enquanto Rosita via-se incapaz de entender o que acontecia. Ela, porém, disse: - Muito agradecida mais uma vez. Dê lembranças à Sancha por mim. Preciso ir agora.
A jovem passou o caminho todo para casa pensando nas palavras de Juana. Chegou pelo menos 45 minutos antes da hora prevista, o que surpreendeu Elza: - Estou feliz por vê-la chegar tão cedo. Pensei que demoraria mais, já que você costuma conversar com a atendente por algum tempo.
- O meu padrinho precisa de mim para deixar a perna dele sem doer por algum tempo. Prometi ao papai que cuidaria dele quando ele precisasse de mim – respondeu ela calmamente. Era evidente na voz de sua madrasta o nojo que sentia por Juana. Rosita odiava qualquer coisa que excluísse as pessoas de algum modo. Racismo sendo uma das principais porque dificilmente as pessoas não diziam coisas horríveis. Juana era vítima constante disso sempre que tentava empregar-se em salões de beleza como cabeleireira, maquiadora ou artesã de perucas. Pois as donas não viam com bons olhos uma negra atendendo clientes.
- A sua preocupação muito me comove. Vivian teria orgulho de você se pudesse vê-la agora – respondeu a alemã com um sorriso que embrulhou o estômago de Rosita. A jovem não podia acreditar em tanta falsidade. Afinal, não eram raras as vezes em que ouviu Elza falar mal de sua mãe. Especialmente dizendo que ela pelo menos estava viva aproveitando a vida com Gerardo, ou no caso sem ele, enquanto ela já estava morta e enterrada.
- A sua consideração para com minha mãe também me comove – respondeu a jovem dando um sorriso forçado, mas bem disfarçado. Fingiu não saber daquele horrível detalhe porque tinha a certeza de que confrontá-la seria um movimento muito ruim. E se quisesse ir embora daquela casa quando fizesse 21 anos, era melhor ser discreta.
Subiu para o quarto determinada a fazer seus dias melhores.
...
Uns dias haviam se passado em Buenos Aires. Era sábado. Rosita estava sozinha com o padrinho. Era uma das poucas vezes em que Elza saía com as duas filhas. Especificamente, elas tinham ido fazer compras e tomar sorvete. Geralmente ficavam horas fora de casa, voltando apenas perto do fim da tarde. Naquele momento passava do meio dia.
- Você deveria sair e se divertir, querida. A vida é tão curta – disse ele suspirando. Uma grande festa havia sido anunciada há alguns dias e a cidade toda estava em polvorosa. Don Rodolfo Soler era considerando o maior anfitrião já visto na capital argentina. A jovem, no entanto, disse à madrasta que não iria porque as provas finais do penúltimo semestre estavam próximas. Queria estudar para obter as melhores notas. Desejava mostrar aos seus professores e colegas que ser mulher não a impedia de nada, muito menos de se formar.
- Eu já não suporto nem ficar perto da Elza. Vivo disfarçando o nojo que sinto dela. Não sei até quando vou poder deixar o que sinto entalado na garganta – respondeu ela nervosa.
- Tenha esperança, meu anjo. Seu pai voltará com certeza logo e vocês poderão resolver isso de uma vez por todas – disse o advogado com um sorriso.
- Se isso fosse tão simples... Não consigo até agora entender como eu e o papai caímos nas mentiras da Elza. Possivelmente ela jamais foi realmente amiga da minha mãe! – exclamou a jovem tristemente.
- Eu sempre tive essa certeza. A sua mãe, no entanto, amava todo mundo sem distinção embora fosse muito crítica. E a senhora Rohm sempre foi apaixonada pelo seu pai. Ela nunca se conformou com a união dos seus pais. Provavelmente ela odiou sua mãe por ter roubado a felicidade que Elza achava ser dela por direito. E só voltou à Alemanha porque o pai a forçou a casar – respondeu Alban algo sério e triste para depois dizer: - Nenhum pai ou mãe deveria forçar um filho a isso. Só Deus sabe que tipo de consequências vem disso. E eu posso te dizer que a maioria é ruim. Felicidade é coisa que não se compra. E quando isso é negado para quem quer que seja, a mente da pessoa é capaz de se quebrar em mil.
- Então você acha que ela pode estar ou ficou... demente? – a jovem assustou-se.
- Eu não sei. No entanto, não é só isso. Há muita coisa que ainda permanece oculta, mas só com provas ou informações eu poderia ir ao fundo disso. Por agora é melhor não falarmos nada sobre. O carteiro daqui um pouco deve estar por aí e como as três não estão em casa, você tem de receber as cartas – ele hesitava algo em falar, o que indicava a Rosita sobre o assunto, pelo menos no momento, estar encerrado.
A jovem saiu do quarto um bocado pensativa. De fato, muita coisa envolvia-se em mistério. Por que o corpo de sua mãe havia sido velado e sepultado logo após a morte sem uma autópsia ou necropsia conclusivas? Por que o médico que deveria ser responsável por tal prática havia feito a certidão de óbito com tanta pressa? Onde estaria seu pai? Afinal, sem corpo, o falecimento não podia se confirmar. E algo lhe dizia que a história do naufrágio causador do desaparecimento também estava envolto em perguntas. Aparentemente, porém, isso não era bem assim.
Outra coisa que Rosita vivia se perguntando era como Elza vivia quando ela não tinha emprego e muito menos direito a qualquer coisa de seu pai. Até onde ela sabia, se bem que podia ser mentira, ela ainda possuía rendimentos da fortuna do falecido marido. Os gastos de Heidi, porém, viviam ultrapassando todos os limites. A folgada loira tinha incontáveis roupas e joias no armário. Amélie, por sua vez, quase não comprava nada e sempre usava roupas extremamente fechadas.
Sacudiu a cabeça tentando não pensar nisso enquanto esperava o carteiro. Ele chegou algum tempo depois com uma boa quantia de cartas e uma encomenda endereçada à jovem, que estranhou...
- Só tem uma caixa postal nessa encomenda e três letras como remetente. O senhor sabe de onde veio?
- Pra ser honesto, essa caixa postal é próxima de Palermo. Eu só não sei quem mora lá e muito menos porque usaria uma caixa postal ao invés de um endereço completo – disse o carteiro mostrando algo de estranheza vendo aquilo.
- Tudo bem, agradeço a ajuda – disse ela sorrindo educadamente.
Ele saudou de volta para logo depois seguir o rumo de seu emprego enquanto ela voltou para a casa quase vazia. Subiu ao seu quarto para separar cuidadosamente as cartas, pois Elza exigia absoluto cuidado com a correspondência.
A maioria das cartas eram contas e rendimentos. Algumas eram endereçadas para Heidi, escritas por admiradores ou por agenciadores de modelos e atrizes. Uma, no entanto, chamou-lhe a atenção. Primeiramente, porém, resolveu saber que encomenda era aquela endereçada a ela. Trancou a porta do dormitório antes de abrir a caixa. Surpreendeu-se com seu conteúdo: um lindíssimo vestido de seda dourado-perolada brilhante e sapatos da mesma cor. Além de joias de pérolas que deviam valer pelo menos um semestre de sua faculdade. Perguntou-se quem teria enviado tal presente. A única pista que ela tinha, no entanto, era o bilhete vindo junto:
“Seja minha princesa na festa de Don Rodolfo. Eu a quero dançando comigo até o alto da madrugada. R. L. T.”
- Quem será R. L. T.? – ela observou os presentes por alguns minutos, mas logo os pôs cuidadosamente dentro da caixa, pois não iria à festa. Guardou-a bem escondida em um alçapão, pois no armário não havia espaço. Afinal, ela tinha mais com o que se preocupar naquele momento.
Olhou finalmente o que lhe chamara atenção. A carta era endereçada à Elza, da Alemanha. O envelope era pardo e a letra do remetente era bem refinada, indicando alguém culto e muito fino. O timbre no envelope lhe era muito familiar, ela só não recordava onde o tinha visto. E o nome do remetente lhe causava a mesma sensação. Por mais que fosse falta de educação, ela abriu a carta. Leu-a. Entendia alemão graças aos livros da mãe e os dicionários do pai. O coração de Rosita galopou dentro do peito tal qual um cavalo xucro enquanto o conteúdo revelava-se. Recusava-se a acreditar.
Nunca havia sentido tanto ódio em sua vida como agora. Sua madrasta era ainda pior do que ela imaginava. Fechou os olhos para acalmar-se, movimento ensinado pela mãe para não permitir o nervosismo tomar conta. Abriu-os determinada a fazer Elza pagar por seus pecados. Primeiro, porém, precisava descobrir mais. Aquela carta não era a única vinda daquele remetente. Rosita agora lembrava-se de outras. Ela apenas não sabia se as cartas eram queimadas ou guardadas. Se bem que vindo de uma pessoa como essa, ela muito bem poderia usá-las como garantia de que teria sua pena reduzida ou até extinta se fosse presa.
A jovem olhou o relógio do quarto, vendo que era meio-dia e quarenta e cinco. Elza, Heidi e Amélie só voltariam perto do fim da tarde, o que lhe dava algumas horas para procurar o que precisava. Como conhecia detalhadamente todos os cômodos da casa, poderia mexer neles sem que sua madrasta notasse algo fora do lugar. Inclusive ela elogiava sua dedicação a deixar o quarto exatamente do jeito que o encontrava. Agora, Rosita usaria isso como seu trunfo para descobrir mais podres dela.
Foi ao quarto da madrasta com a carta colocada na cintura da saia. Estava destrancado. Estranhou, já que Elza nunca deixava a porta sem tranca. Será que ela havia se esquecido de passar a chave? Percebeu, ao entrar, algo caindo no chão. Era um barbante comprido pendurado no lado de cima da porta, usado para indicar invasores. No entanto, isso não parecia necessário, dado que ela deixava tudo trancado. Isso, porém, devia ser normal para alguém com uma vida tão suja. Um truque velho e eficiente, mas não o suficiente para detê-la.
Passou pelo menos uma hora procurando em todos os locais possíveis do quarto. Preocupou-se em deixar tudo exatamente como encontrava. Olhou detalhadamente para descobrir se não existiam compartimentos secretos nos móveis. Nada que pudesse dar qualquer prova contra Elza. Pendurou cuidadosamente o barbante acima da porta para evitar que alguém notasse sua invasão.
Onde então ela teria escondidas as cartas anteriores à recentemente recebida? Ela não tinha como procurar pela casa toda naquele período de tempo tão curto. Um insight repentino veio quando Rosita lembrou-se de que Elza sempre ia ao sótão quando recebia uma dessas cartas. Primeiramente, no entanto, muniu-se de um maço de folhas parecidas com a da carta recebida. Afinal, ela não podia arriscar que a madrasta notasse a falta delas.
No sótão, colocou as coisas que levava no chão e logo foi em busca das outras cartas. Olhou cada canto detalhadamente atentando-se a qualquer coisa parecida com um compartimento secreto. Foi quando encontrou uma tábua solta nos fundos do cômodo. Lá havia uma “bolsilla” cuidadosamente fechada. Abriu-a. Não precisou de muito para reconhecer a letra e o timbre do envelope. Cuidadosamente retirou os papéis dos envelopes e no lugar deles colocou as folhas vazias dobradas exatamente do mesmo jeito das cartas. Recolocou tudo de volta no lugar e amarrou a “sacola” do mesmo jeito original, além de deixar a tábua ocultadora na mesma posição. Levou pelo menos uma hora e meia em toda a tarefa.
Regressou ao seu quarto. Trancou a porta. Leu todas as cartas por ordem de envio. Eram pelo menos 36 cartas enviadas pelo menos uma vez ao mês. Horrorizou-se mais ainda com o que viu. Nas palavras incluíam-se até ameaças à sua vida ou sua integridade física. Quis chorar, mas algo a impediu. Tinha de ser forte de alguma forma.
Depois de terminar a terrível leitura, o que levou mais noventa minutos, colocou todas as cartas, incluindo a recente, dentro de uma pequena caixa. Pôs o conjunto junto com o vestido recém-ganho e fechou o alçapão. Que necessitava de um movimento de mão feito abaixo da tábua para ser aberto, pois ele não possuía tranca. E camuflava-se muito bem com o resto do piso. Sempre se perguntava por que nunca dissera à Elza sobre aquele compartimento do quarto. Agora sabia que fizera muito bem em nada dizer. Aliviou-se ao perceber que elas ainda não haviam voltado. Por um momento achou que seus planos dariam errado. Sorriu ao perceber que os ensinamentos da mãe novamente lhe davam força.
O problema agora era como ela faria para mostrar aquelas cartas às autoridades competentes para que Elza fosse presa. Ela duvidava que a polícia argentina fosse capaz de lidar com aquilo. A situação era, dizendo o mínimo, horrenda. A chamada Polícia Internacional era a única que podia cuidar disso, mas como ela enviaria as cartas sem que a madrasta notasse? Sua rotina era tão apertada que ela ainda admirava-se de conseguir estudar e tirar boas notas. Precisava pensar em alguma solução. Elza e seus comparsas não podiam continuar agindo impunes. Deus sabia que coisas terríveis poderiam acontecer se eles não fossem detidos.
As horas escoaram. Elza voltara com as filhas para casa. A noite transcorreu tranquila após o caprichado jantar feito por Rosita. Alban, agora melhorado da crise, desceu para comer junto com todos. Percebeu claramente que a afilhada havia feito alguma coisa durante a tarde. Os barulhos deixaram isso claro.
A madrasta, por sua vez, elogiou bastante a comida. Heidi claramente odiava quando a mãe fazia isso e Amélie manteve-se séria embora ensaiasse um sorriso muito bem escondido. O padrinho da cozinheira sorriu: - A vida é curta demais para não apreciar boa comida.
- Uma das poucas vezes em que concordamos – Elza riu levemente enquanto Rosita agradecia delicadamente os elogios.
A alemã assentiu enquanto suas duas filhas retiraram-se após terminar o jantar. A jovem, por sua vez, demorou um pouco mais a retirar-se, pois precisava lavar tudo e arrumar a cozinha. Durante a arrumação, pensava em várias maneiras de fazer o melhor uso possível das provas que agora tinha. Suspirou longamente esperando o dia seguinte.
À noite, com a casa e a rua já silenciosas em razão da hora, Rosita era a única ainda acordada. Geralmente dormia logo após deitar-se, mas dessa vez o sono recusava-se a vir. Certamente sabia que ela precisava pensar em todo o descoberto durante o dia. Subitamente, um estranho barulho chamou-lhe a atenção. Podia jurar que eram passos. Será que Elza ou alguma de suas filhas ou o padrinho estavam acordados? Dificilmente escutava qualquer ruído noturno, pois o cansaço das tarefas diárias a fazia dormir quase de imediato.
Percebeu, porém, que não eram os passos de nenhum deles. Elza, Heidi ou Amélie sempre andavam de sapatos e dificilmente acordavam durante a noite. O padrinho preferia dormir horas corridas porque achava que o sono podia aliviar ou quem sabe evitar as crises de gota. Então quem podia estar andando pela casa àquela hora?! E como, pelas coisas sagradas, alguém havia entrado?! Ela sempre trancava tudo rigorosamente às onze horas! Viu-se pouco corajosa de sair da cama, pois podia ser um ladrão ou coisa pior. O que, porém, ela estranhava, era o fato de não ter outro ruído a não ser os passos, que pararam possivelmente na sala.
Levantou-se e pôs um xale sobre a camisola. A casa estava silenciosa. Era como se o dono ou dona dos passos estivesse esperando. Ou quem sabe já tivesse ido embora. Ainda sim achou melhor olhar, quem sabe assim descobriria como a pessoa entrou na casa. A casa estava bem escura, mas Rosita achou melhor não acender a luz, pois temia acordar alguém.
Atentou sua audição para qualquer barulho suspeito e passou do corredor dos quartos para a escada em pouco mais de alguns passos silenciosos. Foi quando viu uma ponta de tecido preto escapando pela porta que dava acesso à cozinha. Mas... mas... a porta estava fechada! Então como?! Embora estivesse com muito medo, desceu para tentar descobrir mais. Encontrou um bilhete com uma foto grampeada sobre a mesa de centro...
“A festa de Don Rodolfo Soler é onde você irá encontrar o homem dessa foto. Entregue as cartas a ele. Sua Fada-Madrinha.”
- Uma fada madrinha que se veste de preto? – pensou Rosita quase rindo embora a situação não fosse para risadas.
Ajeitou a toalhinha no lugar. Tratou de voltar para o quarto com o estranho novo presente recebido. Quando estava no corredor, percebeu a luz do quarto de Amélie acesa. Percebeu que tinha de correr ou ela a veria e perceberia o papel em suas mãos, pois era impossível escondê-lo na camisola. Rapidamente foi para o quarto. Sua porta fechou-se exatamente na hora em que a mulher estava no corredor. Ela olhou atentamente: - O que Rosita estava fazendo fora da cama essa hora? Possivelmente foi à cozinha tomar água. Por sorte mamãe e Heidi não acordaram, senão estariam muito bravas.
Ela desceu para averiguar uma suspeita que possuía há algum tempo. Lembrava-se de que Gerardo e Vivian haviam morado ali antes de Rosita nascer. E que a casa tinha sido dada de presente por um amigo misterioso sobre o qual ela só sabia que seu padrasto tinha salvado a vida anos antes. No entanto, parecia haver mais alguém na casa além dos cinco ali vivendo. Não era raro ela ouvir passos ecoando abaixo da casa. Seu dom lhe permitia ver coisas que outros olhos não viam e ouvir o que outras audições não captavam.
De repente, foi surpreendida por Heidi: - Fora da cama essa hora?
- Estou com sede. Algum problema? – respondeu ela séria.
- Nenhum. Também estou – respondeu a irmã fingindo despreocupação, mas sendo “pega na mentira”: - Algo te preocupa?
- A carta costumeira de Herr Schroeder não chegou ainda. Sei que às vezes elas atrasam, mas estou estranhando. Ele garantiu na carta anterior que mandaria notícias esse mês – respondeu a moça algo aflita.
- Tenha paciência, Heidi. Você sabe que o Gerardo fará qualquer coisa para ver Rosita e o advogado ilesos – respondeu Amélie mantendo a seriedade.
- Seria melhor se nós cortássemos alguma coisa de cada um só para apressá-lo – Heidi sorriu.
- Cala a boca, pelo amor de Deus. A mamãe sabe que subestimar o Nieves é a pior das ideias. Deus sabe o que ele faria se machucássemos algum dos dois – Amélie bufou com força.
- Não tem como negar que não há coisa pior que um animal acuado. Além do mais, o grupo tem que cumprir a parte deles no acordo se quiserem a colaboração do Gerardo em decifrar aqueles mapas – Heidi disse com tédio.
- E ele tem executado esse trabalho com sucesso. Faltam agora três partes do mapa para serem decifradas. A única parte realmente chata são as viagens e escavações para encontrar as partes dele. Elas são agora obrigadas a serem demoradas porque as autoridades internacionais estão em busca de remanescentes. Se as coisas tivessem saído como planejado, a essa hora o plano já estaria ativo – a irmã mais velha disse no mesmo tom sério costumeiro.
- Me lembro de como a mamãe ficou arrasada com a morte dele. Poderíamos ter tido o mundo nas mãos se o nosso povo não tivesse sido tão ingrato e os aliados não tivessem feito o que fizeram – o tom da caçula encheu-se de ódio.
Amélie nada disse em resposta, apenas seguiu para a cozinha e tomou um grande copo de água em um gole. Suspirou longamente. Deus, como alguém podia ser capaz de pensar que aquele tipo de coisa funcionava? Isso era no mínimo uma loucura sem tamanho.
Esfregou os braços como se sentisse frio. Não sabia até quando iria aguentar toda aquela situação sem reagir. Já não lhe bastava ter visto o namorado fugir da Alemanha pouco depois do início da guerra? Ela só queria um fim para aquele tormento, apenas não sabia como faria isso sem a mãe notar. Conhecia-a bem demais para saber até onde ela iria pelo que desejava. Podia ser que ela tivesse, oito anos antes,...? Quem sabe, mas sem provas era impossível acusá-la de qualquer coisa relacionada àquilo. Achou melhor subir de volta ao quarto e voltar a dormir. Averiguaria outro dia suas suspeitas.
Mais alguns dias haviam se passado com a mesma rotina. Era afinal o grande dia. Heidi e Elza escolhiam entre incontáveis vestidos para a festa daquela noite. Amélie já estava com o seu escolhido. Algo elegante, mas estritamente fechado como eram suas roupas costumeiras. A irmã caçula olhou-a: - Você podia pelo menos usar um decote, não?
- Tenha a santa paciência, Heidi! – exclamou a mais velha ríspida.
- Não fale assim com sua irmã, Amélie. E concordo, você às vezes poderia valorizar seu busto, mas é sua decisão querer ou não – disse Elza suspirando e tentando entender qual era o problema da primogênita.
- Você devia saber por que não gosto de mostrar nada – respondeu a mulher muito séria.
- Querida, as roupas tem enorme poder de disfarçar qualquer coisa. Te ajudo – Elza sorriu e Amélie acabou por assentir. Ela achava melhor acostumar-se com aquele físico adquirido na guerra. Se bem que ela estava tentando desde seu retorno, mas era horrível olhar-se no espelho. Sentia-se horrorosa. Já bastava a mãe tê-la quase deixado doente por privá-la de alguns tipos de comida porque ela constantemente estava acima do peso. Ao contrário de Heidi, que era bonita, magra, mediana e loira, Amélie era alta, morena, corpulenta e “feia”. E dona de expressivos olhos azul-escuros que haviam conquistado um rapaz judeu em 1937.
Um bom tempo havia se passado até Elza conseguir um vestido adequado para a filha mais velha. Olhou atentamente após ela vesti-lo. Sorriu: - Está incrível. Ninguém dirá qualquer coisa. Você até está com um busto maior.
- Agora precisamos de um penteado bonito e uma maquiagem bem elaborada. Depois disso, estará perfeita – disse Heidi dando pulinhos.
- Obrigada, mamãe. Confesso... não saber mais o que dizer – disse ela algo feliz, algo triste.
- Aproveite a festa e conheça novas pessoas. Quem sabe até você finalmente consiga um pretendente decente. Não quero vê-la ficando para tia. Desejo sua felicidade e sabe disso – disse a mãe com ar encantado.
Amélie deu um sorriso curto e breve, mas no fundo, sentia como se fosse explodir a qualquer momento. Quem Elza Rohm pensava que enganava? Infelizmente a mais velha conhecia a mãe bem demais. Sabia que ela decerto planejava casá-la com algum ricaço que pudesse contribuir para os planos horrendos dela e daquele grupo.
Rosita, enquanto isso, conversava em voz baixa com o padrinho. Ele agora sabia sobre os feitos da afilhada e da misteriosa encomenda...
- Eu deveria ter imaginado a maioria disso. Se eu tivesse sido mais firme, tudo seria diferente. Vivian, porém, era muito teimosa e dificilmente ouvia alguém. Mas foi por isso que ela logrou ser feliz com seu pai.
- Eu sei, mas ao mesmo tempo isso custou a ela muitas inimizades. A mamãe não tinha medo de dizer o que pensava. Nem o meu avô escapou das críticas dela – suspirou a jovem para depois dizer: - Vou sair meia hora depois delas. Já tenho tudo planejado.
- Pelo amor de Deus, tenha cuidado, ‘mi hijita’. Você e muito menos eu sabemos onde... – ele dizia quando Rosita o interrompeu: - Eu sei aonde ela é capaz de chegar. Elza não tem limites. Seja quem for que esteja me ajudando, vou dever a essa pessoa até no pós-vida.
Trinidad Rosa deixou o quarto para colocar em prática seu plano. Luis Alban viu-se tremendo internamente. Sabia quem era R. L. T. Não acreditava no rumo monstruoso que as coisas haviam tomado. Desejou apenas que o homem das três letras não quisesse “avançar o sinal” em cima de sua afilhada. Fez o sinal da cruz como se estivesse espantando um espírito maligno.
Pelo menos sessenta minutos passaram. Elza e as filhas, em um carro alugado, saíram para a festa de Don Rodolfo Soler no famoso e elegante bairro da Recoleta. Mais trinta se foram até Rosita sair, já trajada com os presentes dados. E levando as cartas comprometedoras cuidadosamente colocadas em uma bolsinha a tiracolo. Não esquecera a foto enviada pela “Fada-Madrinha”. Conseguiu um táxi após boa demora. O motorista parecia confiável: - Até onde?
- Até o mercado da avenida principal. O senhor pode me esperar por uns minutos ou conseguir outro condutor? – perguntou ela.
- Posso esperar sim. Não é como se muita gente confiasse em um “chofer” negro – respondeu ele para a tristeza dela:
- Juana, a amiga que vou visitar, também é negra. Muito talentosa, mas quase ninguém que dê o valor merecido.
- Imagino que você é Trinidad Rosa Lorens, a filha do comerciante Nieves – disse ele sorrindo.
- Sou tão conhecida assim? – espantou-se ela.
- Você não mudou muito desde sua festa de quinze anos. Foi notícia em todos os jornais – respondeu ele rindo.
- Claro, como esquecer? – suspirou ela ao lembrar-se de quando Elza Rohm, mesmo contra a vontade da enteada, fez uma enorme festa para a chegada da moça à puberdade.
O chofer logo percebeu a infelicidade estampada no rosto dela. O amigo que o enviara naquele endereço contou-lhe sobre a relação tumultuada entre ela e a madrasta. Dirigiu sem mais delongas ou palavras até o local indicado.
Juana cumprimentou Rosita e o chofer. Para a jovem, era muito claro que a atendente conhecia o taxista. Nada perguntou porque achou não ser de sua conta. Disse: - Preciso de um corte de cabelo e maquiagem que me deixem irreconhecível. E uma peruca idêntica ao meu cabelo original. Eu lembro que você faz essas coisas com sobras dos salões de beleza.
A mulher não compreendeu. Queria saber o que ocorria. Rosita respondeu: - Não posso te contar, mas garanto que é importante. Tudo o que eu fizer essa noite pode evitar uma tragédia de proporções mundiais.
Juana espantou-se com aquelas palavras. A jovem definitivamente estava bem mudada. Mais madura e determinada. Acabou fazendo o que lhe foi pedido tendo a certeza, mesmo que não soubesse como, dela estar fazendo a coisa certa.
- Gosta? – a atendente sorriu ao ver seu trabalho concluído.
- Meu Deus, Juana, está perfeito! – disse Rosita com felicidade. A atendente sorriu como se dissesse que sua amiga ainda era a mesma de antes. Em seguida, deu-lhe a peruca: - Duvido que Elza veja diferença quando vê-la usando isso.
- Tenho certeza – sorriu a jovem dando a peruca ao chofer: - Cuide disso enquanto eu estiver na festa, pode ser?
- Com absoluto gosto, ‘señorita’ Rosa – disse ele para os risos das duas.
Rosita despediu-se de Juana e foi com o motorista misterioso de volta para o táxi. Ela percebeu ter esquecido algo:
- Como se chama?
- Rosendo às suas ordens, moça – sorriu ele enquanto ela achava uma estranha coincidência naquele homem.
- Podemos ir. Casa de Don Rodolfo Soler – disse ela entrando no veículo.
Rosendo dirigiu até a elegante e enorme mansão. A jovem desceu do carro com ajuda dele. Sorriu: - Obrigada. Pode dar algumas voltas antes de me buscar. Se tudo correr como eu planejo, saio daqui pouco antes da uma da manhã.
- Certo, vou me lembrar – respondeu o chofer levemente alegre.
De cabeça erguida e sem qualquer medo de fazer o que considerava certo, Rosita chegou à festa. Todo e qualquer movimento, exceto o dos músicos, que não podiam parar de tocar, encerrou-se. A visitante inesperada era claramente a mais bonita da festa depois da esposa de Don Rodolfo, Teresa. A jovem pediu ao mordomo que guardasse cuidadosamente sua bolsa. Ninguém a reconhecera, nem mesmo Elza Rohm e suas filhas, embora tivessem a certeza dela ter algo de familiar. Heidi viu-se muito enfezada. Não podia acreditar no que via. Todos os rapazes estavam agora de olhos voltados para a convidada desconhecida.
A “desconhecida”, no entanto, só teve olhos para a pessoa que com ela falou: - Dançamos?
Rosita a muito custo escondeu o espanto ao ver Thompson ali presente, mas aceitou dançar com ele ao vê-lo tão elegante. Muitos torceram o nariz ao ver mulher tão bela dançando com um claro desclassificado, mas ela pareceu não se importar com os olhares reprovadores. Ela, no entanto, espantou-se quando ele lhe disse: - Eu sabia que você combinaria com esse conjunto todo.
- Você é R. L. T.?! Como me reconheceu? – exclamou a jovem baixinho.
- O meu primeiro nome é Ruperto, por isso a sigla. A sua beleza é única demais para ninguém notar, mesmo com maquiagem – respondeu ele conduzindo-a por uma bela dança de ritmo americano.
- Obrigada, mas, por que tudo isso? – perguntou ela ainda falando baixinho.
- Você vai saber quando chegar o momento. Por agora, vamos aproveitar. A noite é uma criança – respondeu ele de modo misterioso.
Os dois dançaram por pelo menos noventa minutos seguidos. Rosita viu-se obrigada a parar porque precisava beber algo fresco. E sentar-se. Além de pensar em como entregaria as provas. Aproveitou-se da “invisibilidade” causada pelo fim do impacto inicial e foi até onde sua bolsa estava guardada.
Percebeu pelo canto do olho que Heidi estava indo em sua direção. E que Elza e Amélie olhavam. E riu discretamente quando a caçula foi parada por um sorridente moço querendo uma dança. A folgada loira aceitou quando percebeu que ele era um “partidão”. A jovem aliviou-se quando se viu na sala reservada às coisas dos convidados. Trancou a porta quando viu uma chave. Pegou a bolsa pensando em como iria passar com ela sem que ninguém suspeitasse de nada. Abriu-a e olhou o retrato do homem que deveria encontrar.
Estranhamente, não vira ninguém com aquela fisionomia na festa. Quem sabe ele ainda não tivesse chegado. Ou talvez... Não! Ela sequer gostava de pensar na pior das hipóteses. Apenas queria as coisas dando certo. Ela não estava errada.
Foi quando uma voz surgiu dentro da sala: - O homem que você procura está morto desde ontem. Se você quer entregar essas provas, entregue-as a mim. Sei o que fazer com elas.
Rosita virou-se quase de imediato segurando a bolsa como se fosse bater em alguém. O homem ali presente definitivamente estava vestido de maneira muito estranha. E ela não havia ouvido a porta abrir-se...
- Quem é você? Sua fisionomia me soa muito familiar.
- Me chame de Li Qiu, senhorita. Sou confiável, esteja certa – respondeu ele estranhamente.
- Desculpe a pergunta, mas por que está vestido assim? – Rosita achou o traje e o nome muito destoantes da aparência claramente afrodescendente embora ele fosse mais mulato que propriamente negro.
- Moro fora da Argentina faz onze anos. É a primeira vez que deixo a China desde que me mudei com meu mestre – respondeu ele para total dúvida da jovem: - Desde quando a Polícia Internacional chegou assim tão longe? Eu suponho que o homem dessa foto fosse um agente deles, não?
- Sim, ele era. A Patrulha do Tango estava protegendo-o, mas não podemos prever os acasos da vida. Ele teve um aneurisma cardíaco – respondeu ele triste.
Ela podia sentir que ele falava a verdade, mas ainda sim fez outra pergunta: - Você sabe quem me mandou essa foto?
- Talvez a mesma pessoa que tenha te enviado essas roupas e joias. Considerando que ele arrasta um mundo por você desde os seus dezesseis anos, não estou surpreso – respondeu ele rindo pela primeira vez desde eles terem se visto.
- Como sabe disso se não saiu da China nos últimos onze anos? – ela olhou-o como se visse um louco. E se perguntando como o outro sabia sobre aquela história que ela descobrira.
- Conversei com Thompson antes da festa. Ele me disse sobre você. Então, confia em mim agora? – ele apenas queria ajudá-la.
- Tudo bem, mas jure que essas provas chegarão nas mãos certas. Eu só quero justiça – disse ela convicta. E espantada ao saber que há vários anos Leopoldo gostava dela. Assustada também com o fato de que o “estranho chinês” havia entrado na sala trancada. Talvez ele já estivesse ali e ela não notara. E nada desconfiada de que Elza tentava ouvir a conversa atrás da porta, mas nenhum som saía da sala.
- Eu garanto que Elza Rohm vai pagar caro por tudo o que fez. E seu pai dentro em breve estará junto com você novamente – respondeu ele enquanto ela lhe passava as cartas.
O “chinês estranho” sorriu. Rosita suspirou voltando-se para um lado e quando novamente virou-se, ele tinha desaparecido sem deixar rastro. A jovem viu-se apavorada. As únicas portas eram por onde ela tinha entrado e o acesso à estufa. No entanto, ela não o vira sair. Deus, mas em que estranho sortilégio ela havia se metido? Será que aquela sala tinha um compartimento secreto assim como seu quarto?
Elza, por sua vez, logo deu de ombros ao perceber que nada estranho ocorrera no cômodo. Possivelmente a tal desconhecida fora retocar a maquiagem ou descansar os pés. Afinal, passar noventa minutos dançando sem parar, ainda mais com aquele salto, deixava qualquer perna implorando descanso. Ela que o dissesse, pois agora mal se aguentava em pé com aqueles benditos saltos. Envelhecer era duro. E muitas vezes demasiado cruel. A alemã ainda mantinha-se bonita, mas muito longe dos anos dourados de sua juventude. Sentiu ganas de chorar quando pensou na felicidade que Vivian lhe tirara ao casar-se com Gerardo.
Rosita, sentindo-se descansada, saíra do cômodo. Espantou-se sobre como o salão agora estava cheio. E alguns rostos lhe eram estranha e assustadoramente familiares. Nada disse, porém. Apenas cumprimentou educadamente ao passar e sorriu ao acenar para os anfitriões. Rodolfo e Teresa tinham a certeza de que a jovem era muito familiar.
Novamente ela dançou com Thompson. Agora um ritmo mais lento. E depois um mais ligeiro. O tempo passou. Seu par a soltou de modo inesperado...
- Preciso beber alguma coisa, anjo.
- Claro! – disse ela atônita ao vê-lo tão ansioso. E assim ela ficou mais ainda quando percebeu incontáveis olhares masculinos em sua direção. Os rostos familiares sorriam de uma maneira que a assustava. Afastou-se sem demonstrar o que lhe vinha por dentro. Notou, pelo relógio antigo da sala, que faltavam apenas cinco minutos para chegar os primeiros da madrugada. Caminhou pelo salão e corredores adjacentes ignorando completamente o que acontecia atrás dela.
As doze badaladas da meia-noite soaram no exato momento em que Rosita chegou ao jardim de trás da casa. O que seus olhos viram não era possível descrever com palavras. Ela quis gritar, mas a voz não saía. Correu de volta com a intenção de sair dali e jamais voltar. Sua corrida fora tão intensa que ela sequer percebera quando deixou um sapato para trás. Ninguém entendeu a razão de uma carreira tão desabalada. Pelo menos até alguns segundos depois. Um dos “novos convidados” próximo à porta recolheu o calçado. Entregou-o nas mãos de Thompson quando este enfim havia voltado. Ruperto contemplou a porta sorrindo com o sapatinho de sua princesa nas mãos.
Continua...
O vampiro da vez: Leopoldo Thompson