De vampiros portenhos e sonhos escabrosos - 4º conto:
Enviado: Qua Out 22, 2014 12:40
Fromking, Tatuador (de antepassados castelhanos e apreciador de tango), Parallax, sinemaniako, lobo da estepe, Esquerdo, Beghini, Saint Guinefort, CineBraManiaco, espero que apreciem esse conto. É onde vamos ficar sabendo como a Paquita veio a se tornar a vampira do conto "La flor de Villa Crespo".
Buenos Aires, 1921...
Naquela noite, naquele café, haveria a apresentação de uma novidade musical. Não eram raros os comentários sobre uma moça de 21 anos que era um verdadeiro fenômeno: uma tocadora de bandoneón. Ninguém sabia muito sobre a bela criatura que andava fazendo a felicidade de muitos ouvintes de boa música. Apenas sabiam que ela se chamava Francisca Bernardo e vivia no bairro Villa Crespo, o berço do tango.
Leopoldo e Guillermo esperavam a apresentação começar. Os dois estavam bastante curiosos sobre quem era a senhorita musicista. Admiravam a coragem da jovem, pois um instrumento daqueles exigia que as pernas ficassem abertas e aquele tipo de coisa era impensável, pelo menos até ali, para moças de boa família. Aquela era a razão pela qual estavam presentes naquele local e horário. O café era bastante refinado, como era costume de todos os estabelecimentos daquele estilo. Os dois apreciavam o ambiente, mas nada pediam porque a condição não lhes permitia comer ou beber como duas pessoas normais.
Foi quando o apresentador anunciou a apresentação. Leopoldo parecia ver a própria beleza da lua cheia materializada em uma linda criatura de rosto redondo e grandes olhos escuros cujo cabelo se encontrava preso por rolos que o deixavam incrivelmente grande e destacado. Ele se viu por toda a apresentação com seus olhos totalmente presos a ela e seus habilidosos dedos que percorriam os inúmeros e espalhados botões do instrumento. O movimento podia ser quase considerado um hediondo crime de tão bonito.
- Como disse que ela se chama mesmo? – perguntou ele para Guillermo, este respondendo: - Seu nome é Francisca Cruz Bernardo, mas todos a conhecem por “Paquita”.
- Paquita – suspirou Leopoldo para depois dizer: - Qué encantadora es ella.
- Leopoldo, por favor, eso otra vez no – Guillermo disse com seu indefectível sotaque britânico no meio do espanhol bem falado.
- Guillermo, vamos sair – sorriu ele para depois juntar as mãos alegremente: - Quero comprar o maior e mais bonito buquê de rosas que pudermos encontrar.
A noite tinha avançado. Leopoldo havia encontrado o presente desejado em uma floricultura próxima ao local onde a jovem se apresentava e estava até o momento, fazendo uma refeição. Durante aquele momento, ela recebeu o primeiro dos muitos buquês, e presentes, que ele lhe enviaria nos próximos quatro anos.
Buenos Aires, 1924...
Paquita Bernardo se encontrava um pouco incomodada com as investidas silenciosas daquele admirador que assistia a todas as apresentações, mesmo quando ela havia estado no Uruguai. Todo o conhecimento sobre ele era seu nome, Leopoldo Belmondo, um espanhol muito rico, dono de inúmeras propriedades e títulos do Tesouro Nacional. Embora nunca tivesse tido qualquer interesse romântico durante sua vida, não podia negar o charme dele embora não fosse muito bonito. Até mesmo o achava adorável, considerando que ele jamais havia ultrapassado qualquer limite.
Admirava-se dele nunca ter se aproximado dela para puxar assunto mesmo lhe dando presentes consideráveis. Desde lindas rosas vermelhas, brancas e cor-de-rosa até mimos como peças de vestuário e broches dourados que ela às vezes usava ao se apresentar. Embora achasse melhor não deixá-los à mostra para evitar falatórios. Perguntava-se sobre o tipo de homem que era ele e quais eram suas reais intenções. Confessava somente a si mesma ter certo medo de aproximar-se para perguntar algo. Não sabia a razão, mas bastava vê-lo e a seu sorriso para quase perder a concentração.
Foi quando o empregado do local chegou trazendo outro enorme buquê de rosas: - É para a senhorita.
- Sim, eu sei. Até imagino quem enviou – suspirou ela para depois perguntar: - Ele ainda está por perto?
- Possivelmente deve estar, mas acho pouco provável – respondeu o rapaz para questioná-la em seguida: - Quer que o chame caso o encontre?
- Não é necessário. Eu presumo que a não aproximação dele se deva a ele saber que não nutro interesses românticos – respondeu ela bastante calma embora sentisse seu coração aos pulos e o pulso acelerado.
- Tudo bem, mas, pedindo desculpas pela sinceridade, você é uma linda mulher. Aposto que há muitos pretendentes desejando pedir sua mão aos seus pais – disse o rapaz. Ela sabia dele se chamar Andre, talentoso violinista que às vezes tocava junto ao jovem pianista Osvaldo Pugliese quando este se apresentava solo.
- Aprecio sua gentileza, mas tenho outros interesses, relacionados com a música – riu ela levemente.
Ele se despediu e saiu suspirando, se perguntando por que não vinha a ele a coragem de declarar seu amor a Paquita. Amava-a desde o momento que a vira, jamais podendo esquecer sua primeira visão de tão fantástica criatura. No entanto, os motivos eram claros: ela vivia de sua música e para ela exclusivamente. Não existia uma remota possibilidade de que um dia ela parasse para casar-se e formar família, pois ela não temia possíveis comentários maldosos ou repreensores. Justamente por isso a admirava e a amava tão profundamente mesmo que seus sentimentos nunca fossem correspondidos.
O destino, porém, era o maior pregador de peças do mundo.
Buenos Aires, 1925...
Era madrugada de 13 de abril, pelo menos uma hora e trinta minutos da manhã. Paquita Bernardo se encontrava já muito doente devido a um resfriado mal cuidado convertido em broncopneumonia grave. Mal podia levantar-se da cama sem sentir seus pulmões sendo brutalmente puxados. Estava quase certa de que a morte a levaria em breve. Seu único arrependimento até ali era jamais ter falado com Belmondo sobre seus sentimentos mesmo ele sempre tendo respeitado sua vontade. Descobriu-se, tarde demais, apaixonada.
Não era tarde demais, no entanto. Ou pelo menos era essa a esperança de Leopoldo quando chegou à casa dela naquele minuto. Hipnotizou, em sonho, um dos vizinhos, para permiti-lo entrar no recinto, o que ele fez logo da autorização ser dada. Procurou cuidadosamente o quarto da jovem determinado a salvá-la de algum modo. O problema, porém, eram as chances dela sobreviver ao processo. Dez em cem, segundo as análises frias e precisas de William de Sussex, seu melhor amigo há mais de três séculos e meio que ele preferia chamar de Guillermo, a corruptela espanhola do original inglês.
Entretanto, não desistiria sem tentar, mas, admitia a si mesmo ter esperanças profundas de que tudo daria certo. Amava-a demais para simplesmente desistir. Finalmente achou o local procurado, entrando, com sua delicadeza costumeira, no quarto de Paquita, acordada em razão de o ar lhe faltar. Ela tomou grande susto ao ver Leopoldo ali parado à beira de sua cama, se perguntando o que estava acontecendo.
- Não se preocupe, minha adorada. Nada farei contra sua honra. Só preciso de sua atenção por alguns minutos, disso dependerá sua vida – disse ele para o espanto dela, que sentiu o sangue congelar nas veias com o quão frio era o toque de seu admirador.
- Quem... O que é você? – perguntou ela com voz muito fraca, percebendo algo realmente errado com ele embora não soubesse o que era apesar da certeza agora tida: Leopoldo era um cadáver.
- Você percebeu, não é? – disse ele ao que a musicista respondeu fazendo imenso esforço para falar: - Como você pode estar morto e ao mesmo tempo vivo?
- Eu... – suspirou ele para logo tornar as íris de seus olhos rubras e mostrar duas presas camufladas nos incisivos antes normais. Causou imenso medo em Paquita, que se encolheu quase sem conseguir respirar, arrancando uma reação desesperada dele: - Por favor, minha adorada, me escute. Sei que me teme, mas, tudo o que quero é ajudá-la. Permita-me te dar uma chance, eu imploro! Meu amor, minha... vida!
- Eu... acho... que... tudo bem – disse ela levantando demoradamente com a intenção se sentar-se à cama, onde Leopoldo segurou-a delicadamente nos braços:
- Como esperei por poder tocá-la. Sentir a maciez da sua pele, dos seus cabelos. Poder acariciá-la ternamente enquanto olho nesses teus lindos orbes negros que me conquistaram desde aquele dia em 1921.
- Te quiero... mucho, mi Leopoldo – debilmente ela levantou sua mão para tocá-lo no rosto.
- Yo también, mi dulce Paquita – ele sorriu. De repente o mundo parecia parar mediante uma demonstração de amor tão bela quanto intensa. Um sentimento, naquele caso, diferente, nada parecido com os modos humanos.
A jovem bandoneonista se viu inesperadamente mergulhada em absurdo êxtase. Os caninos longos e afiados dele não lhe causavam dor alguma a despeito de seu sangue estar sendo drenado através de seu frágil e claro pescoço. Pouco mais de dois minutos sugando-a, ele depositou um delicado beijo com a intenção de cobrir o ferimento. Enfim, fez a segunda parte do trabalho: usando sua longa unha, fez um talho no pulso e ofereceu seu sangue a ela: - Alimentate, mi bien amada.
Pouco a pouco, ela bebeu. O líquido negro-avermelhado vagarosamente entrou em seu fragilizado sistema, causando uma súbita melhora. Era como se todos os problemas desaparecessem com um passe de mágica. Contudo, as coisas não eram tão simples. Foi então que ela disse, agora um pouco melhor: - Leopoldo, eu não sei exatamente o ocorrido em um caso desses, mas me prometa: caso isso não dê certo, seguirá sua vida. Sei que me ama muito, mas nunca o quis sofrendo por mim, de forma alguma.
- Sim, eu prometo, minha amada – não era fácil fazer uma promessa daquelas, mas, menos ainda seria caso tudo desse certo, quando ele tivesse de explicar a ela sobre a rejeição ao sol e a sede por sangue. Perguntava-se se tinha mesmo valido a pena condená-la à sina dele. Não raras vezes, Leopoldo sentia o peso da solidão em seus ombros, causado pela longevidade proporcionada pela vida de vampiro, porém, agora finalmente teria com quem compartilhar seus sentimentos.
Embora adorasse Guillermo como a um irmão, Leopoldo sentia muita falta de alguém que aquecesse seu frio leito e seu coração quase congelado pelos acúmulos de amargura. Em seguida do pensamento, decidiu explicar, cuidadosamente, a ela sobre a rejeição ao sol e a sede que viria a sentir, ao que a jovem perguntou tudo aquilo implicaria nunca mais poder aproximar-se dos parentes. Pois se ela havia entendido, a sede não lhe permitiria ficar perto de humanos por muito tempo.
Ele respondeu: - Você poderá ficar algum tempo com seus parentes ainda, porém, terá que se afastar quando eles começarem a notar que você não mudará mais.
- Entendo, mas como eu disse, prometa que seguirá em frente caso as coisas não deem certo – disse ela séria para depois acarinhá-lo mais uma vez: - Não quero que sofra por mim caso não possa ficar com você.
Por mais duro que fosse prometer semelhante disparate, achou melhor acatar o pedido dela porque não queria desapontá-la. Afinal, permitiu que ela dormisse, pois Paquita realmente estava cansada após passar por tão surreal situação. Já ele, deixou-se conduzir pela eterna noite em que vivia.
14/04/1925, três da tarde...
- O senhor... Belmondo se encontra? – perguntou um menino mensageiro.
- No momento ele está ocupado. Em que posso ajudar? – Guillermo havia acordado por estar com algo de sede e ouviu a porta.
- O senhor Andre, aquele violinista que anda tocando com o Pugliese pianista, me enviou aqui para avisar que a... senhorita Bernardo faleceu essa tarde – disse a criança com profunda tristeza.
- Paquita? – Sussex segurou um triste gemido, pensando em como Leopoldo ficaria arrasado ao saber que o processo havia dado terrivelmente errado.
- Sim, a tocadora de bandoneón. Ela era... adorável – o garoto segurava as lágrimas que teimavam em rolar por seu rosto.
- Eu sei. Não apenas era bela, mas também talentosa e amável. Eu darei o aviso – disse ele dando algumas moedas para o mensageiro mirim.
Mesmo dia, final da tarde...
William de Sussex assistiu, com uma mistura de tristeza e pesar, enquanto Leopoldo quebrava o recinto todo e derrubava objetos usando só as mãos, arrasado pela morte da amada que ele tarde demais havia descoberto correspondê-lo: - Por que el destino tiene que ser tan cruel conmigo?! Por qué?! No merezco la felicidad?! No tengo el derecho de querer y ser querido?!
- Leopoldo, você sabia que as chances dela se transformar completamente eram poucas, ainda mais na condição em que ela estava – disse ele em um único fôlego e continuando com tristeza: - E ela estava sofrendo demais, meu amigo. Eu lamento por Paquita, mas você prometeu a ela que seguiria em frente. Aconselho-o a cumprir sua promessa.
- Sim, promessa é sempre dívida, Guillermo. Não é fácil, porém – suspirou ele indo pegar um casaco.
- Imagino que queira despedir-se dela pela última vez – disse Guillermo levantando-se para esperar o amigo sair com ele.
- É o que pretendo fazer. E antes passaremos na floricultura, onde quero encomendar um último presente à minha adorada – disse ele com profunda tristeza. E ela calava tão fundo a ponto de Leopoldo sentir vontade de expor-se à luz solar.
Uma hora havia se passado. Belmondo e Sussex haviam chegado ao velório de Paquita Bernardo portando uma grande e caprichada coroa de flores com rosas em três tons diferentes: vermelho, branco e cor-de-rosa.
Arturo e Enrique, dois dos seis irmãos da jovem falecida, já sabiam, pela conversa tida com ela na noite anterior ao falecimento, que Leopoldo era um possível pretendente a casamento. E a mesma havia se apaixonado por ele mesmo mal o conhecendo. Os dois aceitaram educadamente o belo adorno e permitiram o espanhol se aproximar para uma última despedida, pedindo que ele fosse rápido. Queriam evitar maiores comentários, considerando que a morta era solteira e não pensava em relacionamentos.
Tocou delicadamente as mãos que tantas vezes haviam tocado o bandoneón agora órfão sobre uma cadeira próxima ao caixão. Disse com profunda emoção na voz: - Quem dera tivéssemos tido uma oportunidade para viver o nosso amor. Eu a teria levado muito além das estrelas e te daria todas de presente se me pedisse. Não importa quanto tempo se passe, eu vou te amar. Amar-te até o fim dos dias.
Coroando as palavras que comoveram os irmãos e pais da jovem de uma forma inexplicável, Belmondo pegou três rosas, nos tons da coroa trazida, e colocou-as nas delicadas mãos da moça velada para depois inclinar-se sobre ela em um doído pranto de silencioso adeus.
- Você realmente a amava, não é? – Enrique, o irmão que a levava aos shows em seu táxi, aproximou-se.
- Por mais próximo que você fosse de Paquita, você talvez nunca entenda o quão grande era meu amor por ela. Eu sabia, porém, que ela nunca se interessou por romances porque sua verdadeira paixão era a música. Sempre respeitei este limite e continuarei fazendo-o, se não me desejarem por perto por razões envolvendo a reputação dela – respondeu ele com tal firmeza que acabou por despertar imensa admiração em todos os presentes, que tristemente o saudaram pela perda da amada.
Ao término daquele momento, Leopoldo Belmondo deixou o funeral junto de Guillermo de Sussex. Naquela noite, nada sentiu além de uma sensação terrível de vazio emocional. Sequer teve sede, passando todo o tempo olhando para o teto, deixando seu melhor amigo preocupado. Ele francamente esperava que aquilo fosse só um momento do luto vivido.
15/04/1925, noite do dia do enterro...
A terra parecia se mexer. Alguma coisa tentava abrir passagem entre o monte de marrom que ali existia. De repente, uma mão. Depois, um antebraço. Logo veio um braço inteiro e as unhas seguravam com força usando o chão acima como apoio. Finalmente, um corpo inteiro e uma respiração ofegante cortando o ar com incomum força. O vento balançou o vestido, imundo em razão da terra da cova, mostrando que o cadáver revivido era uma mulher. Três flores quase intactas pendiam presas a uma das mangas devido aos espinhos.
- Estou... viva? – ela se perguntava ao ver que seu antes túmulo se encontrava vazio. Espantava-se com o tamanho de suas unhas, agora grandes como garras e afiadas como facas.
O vento noturno continuava cortando o sepulcral silêncio do Cemitério da Chacarita. Enquanto ela parecia cortar o ar em movimento com seu andar cadenciado e os cabelos agora soltos confrontando a cor da noite. Como não conhecia bem o local, sentia-se perdida. De repente, colocou uma mão sobre a garganta que repentinamente ardia. Inúmeros odores vinham ao seu olfato mudado: tabaco, café, terra, flores, álcool e um inicialmente não identificado, mas que ela soube o que era quando viu o zelador noturno. Um estranho instinto. Pensou ela ao perceber que o odor recém-identificado era nada menos que sangue.
- Leopoldo me disse sobre eu sentir sede por sangue. É isso então? Deus – pensou apreensiva enquanto observava o homem andando em redor dos túmulos próximos à entrada. Não desejava matá-lo, porém, estava literalmente morta de fome. Foi quando sua visão se tornou uma mistura de vermelho e negro e seus caninos antes normais se transformaram em duas presas brilhantes e belamente animalescas. Ela esqueceu qualquer noção de civilidade e partiu ao encalço do homem que seria sua presa, quando seus instintos a alertaram para alguém atrás: o coveiro da noite tentando decapitá-la com uma pá.
Sua delicada mão esquerda, que agora possuía sobre-humana força segurou o pulso do homem, que gritava sem parar: - Por Dios, una muerta caminante! Alguien acúdame!
Com a outra mão, jogou longe a pá, agora apenas um objeto sem uso. Logo estava usando suas novas “armas bucais” para se alimentar do sangue daquele homem. Quente e fresco, exatamente como ela precisava. A sensação era estranhamente maravilhosa. Cada gota daquela vida sendo alimento para a sua nova existência. Sentia-se renovada, como se pudesse deixar tudo para trás. Entretanto, ao perceber que havia matado, abandonou o cadáver, horrorizada com seu feito. Seu vestido antes apenas imundo pela terra agora se encontrava empapado de sangue na parte do peito. Quis gritar, socar qualquer coisa que estivesse ao seu redor tamanho seu horror mediante a constatação de ter se tornado um monstro assassino.
Foi quando o princípio de um grito se fez, para ser bruscamente interrompido pelo que parecia um puxão. Quando ela olhou, viu uma criatura magra debruçada no pescoço do zelador, debatendo-se tentando escapar. Paquita viu que o homem vestido de preto era um vampiro como ela e o mesmo devia estar esfomeado, tamanha a vontade ao sugar a vida do pobre homem, finado ali mesmo, brutalmente marcado. Ficou estática ao ver quem era a pessoa, tentando tampar uma exclamação de espanto: - José Betinotti?! Por lo amor de Dios!
Limpou a boca com um guardanapo que claramente havia sido surrupiado de algum restaurante e olhou para a vampira recém-nascida: - Você está imunda, niñita. Precisa de um banho e roupas limpas.
- Eu sei – disse ela desesperada enquanto tentava apagar de sua mente aquelas imagens de morte de sangue.
- Imagino que está assustada com que fez, porém, acostume-se, é assim que nós vivemos: matando para obter nosso alimento. E esses dois não eram lá grande coisa: ambos ex-presidiários condenados por crimes horríveis, os únicos a aceitarem trabalhar no cemitério de noite – seus caninos enormes e pontudos ainda estavam em evidência nos lábios enquanto ele ria.
- Eu me... – ela tentou terminar a frase, mas foi interrompida: - Sim, sim, você se recusa a fazer isso, mas terá que fazê-lo se quiser sobreviver. A não ser que você pense em beber o sangue insípido de bichos. Até você pode, mas, qualquer um mais inteligente vai logo perceber que você não é normal por conta que você é branca feito leite.
- Para um pajador urbano, você não preza muito pela delicadeza – disse ela um tanto séria ao que ele se ofereceu: - Eu te levo para onde moro. Não tenho muitas roupas de mulher, mas, acho que alguma das minhas pode te servir enquanto seu mestre não perceber sua mudança.
- Leopoldo com certeza pensa que estou morta! – exclamou a musicista ao que ele abriu a boca em um “ó” imenso:
- Leopoldo Belmondo?! Você... sobreviveu ao sangue dele?! Nossa, mas você é sortuda!
- Não sei como aconteceu, mas, estou aqui, de volta. Uma assassina chupadora de sangue – disse ela ajoelhando-se e caindo em prantos.
- Ah meu Deus, não gosto de ver mulheres chorando. Senhorita, eu acho melhor nós sairmos daqui e irmos até a casa da minha mestra María Luna. Ela vai saber como lidar com você e avisar ao irmão dela sobre seu retorno – disse ele oferecendo ajuda, que ela aceitou apesar de não conhecê-lo direito para em seguida perguntar: - Sua mestra e Leopoldo são irmãos?
- Credo, você não prestou nenhuma atenção ao que eu disse – falou Betinotti para depois olhá-la: - No entanto, não me admiro, afinal, imagino que ainda está confusa. Também fiquei assim quando emergi do meu túmulo, que por sinal é bem próximo ao seu. Depois de me alimentar pela primeira vez, porém, eu sabia que havia nascido para ser vampiro.
- Não estou certa de ter “nascido para ser vampira” – disse ela, novamente em pé.
- Se Leopoldo te deu esse presente, quem você pensa ser para recusá-lo? – perguntou ele sorrindo agora com normalidade ao que ela refletiu sobre aquela situação. Ela confessadamente não sabia o que esperar do presente e do futuro. Só sabia de o passado ter sido definitivamente abandonado.
Uma hora depois, casa de Leopoldo Belmondo...
- Você não se alimenta há quase dois dias, meu amigo. Deste modo você não conseguirá sequer andar – Guillermo encontrava-se preocupado com a “estase” de seu amigo, mais pálido do que nunca e apresentando olheiras roxas e fundas.
- Dejame en paz, Guillermo. Quiero morir – respondeu ele completamente imóvel.
- Leopoldo, pelo amor de Deus, pare com isso. Sua letargia está acabando com minha tranquilidade! – exclamou Sussex perto do desespero.
Batidas inesperadas na porta fizeram Guillermo dar um pulo da poltrona. Foi atender se perguntando quem estava indo incomodá-los àquela hora da noite, quando viu Betinotti dizendo em um único fôlego: - Boa noite, Guillermo. Como está? Tenho ótimas notícias para Leopoldo.
- O que poderia animá-lo depois de perder Paquita para a morte definitiva? – o britânico se encontrava profundamente consternado pelo ocorrido e pelo estado letárgico-depressivo do amigo.
- Reconhece isto? – as rosas, que haviam adornado as mãos da agora vampira, estavam com o pajador.
- Você quer dizer que...? – Guillermo não acreditava no que via e logo gritou: - Belmondo, levantate!
- Te dije para dejarme en paz! – exclamou o vampiro com tristeza ao que o outro voltou e o agarrou pela roupa:
- Paquita vive, su imbecil! Ella se transformó por completo!
- Estás cierto de eso?! – o espanhol se levantou a muito custo, ainda não crendo que sua amada havia voltado da morte.
- O cheiro dela está muito forte nas rosas que o Betinotti trouxe. Eu reconheceria de longe aquele odor – disse ele com um misto de incredulidade e felicidade. Segurava um enfraquecido Leopoldo em seus braços, pois este mal conseguia manter-se em pé devido à falta de alimento.
- O irmão da minha bela mestra está muito mal. Quer que eu busque alguém fresco para ele? – José adentrou o recinto com cuidado para não parecer invasivo.
- Não é preciso. Temos suprimentos o suficiente quando essas coisas acontecem – disse Sussex deixando Leopoldo na poltrona antes sua e chamando as duas empregadas que trabalhavam para eles.
Betinotti testemunhou a insólita cena de Belmondo alimentando-se de pelo menos três litros de cada jovem, sendo monitorado por seu fiel escudeiro. Cruzou os braços, sorridente, ao ver que Leopoldo havia voltado à sua imponência de costume. Esperou até os dois estarem prontos para sair com ele.
Os três dirigiram-se à casa de María Luna, onde a vampira os recebeu calorosamente, dando especial atenção ao pupilo de quem ela se orgulhava profundamente. Sussex e Belmondo se viram rindo, mas se sentiam melhores ainda com a boa nova. A maravilhosa notícia que se encontrava em uma tina de água tirando a terra e o sangue que haviam se impregnado em sua pele e roupas. Paquita naquele momento usava a esponja coberta de sabão que lhe havia sido dada pela “cunhada” que tão bem a havia recebido.
Foi quando ele entrou no quarto após ser informado de onde ela estava. A vampira recém-surgida cobriu as “vergonhas superiores” e virou o rosto: - Eu matei um homem, Leopoldo. Como lidarei com isso?
Ele aproximou-se carinhosamente: - Isso já me aconteceu quando eu era um principiante. Irei ajudá-la a se controlar, não se preocupe. Você precisa confiar em mim. Eu amo você, minha adorada.
Ela sorriu apesar de por dentro estar destroçada. Pensava no que havia deixado para trás, porém, teria tempo para pensar nisso. Também para se acostumar aos novos tempos, às novas regras, aos anos que viriam, aos adeuses que daria. Suspirava feliz ao sentir as mãos de Leopoldo lavando seu cabelo com o xampu. Talvez fosse o momento de experimentar a felicidade nos braços de seu amado.
E foi a primeira vez que ela experimentou viver um romance. Um belo e imortal amor que havia começado em 1921.
Personagens não-históricos desse conto: (E como a autora os imaginou...)
Leopoldo Belmondo: Espanhol nascido na região da Cataluña no começo do século dezesseis, Leopoldo veio para a Argentina junto de colonizadores espanhóis em meados de 1530, já transformado, junto da irmã María Luna, então humana. Não se conhece muito de seu passado ou sobre como se tornou vampiro, só se sabendo que ele tinha em meado de 33 anos quando morto. (Se algum de vocês já jogou algo da franquia "Castlevania", vai entender de onde tirei o sobrenome do vampiro em questão.)
William (Guillermo) de Sussex: Britânico, data de nascimento desconhecida, mas presume-se que tenha sido transformado pelo menos dez ou vinte anos antes de Leopoldo pelo mesmo vampiro. Sempre está ao lado de Belmondo embora às vezes ache as atitudes dele um tanto estranhas ou humanas demais. Aprecia boa leitura e é como um irmão mais velho para Paquita, a quem apelidou de "Little Butterfly" (Pequeña Mariposa).
Un bandoneón hecho mujer
Buenos Aires, 1921...
Naquela noite, naquele café, haveria a apresentação de uma novidade musical. Não eram raros os comentários sobre uma moça de 21 anos que era um verdadeiro fenômeno: uma tocadora de bandoneón. Ninguém sabia muito sobre a bela criatura que andava fazendo a felicidade de muitos ouvintes de boa música. Apenas sabiam que ela se chamava Francisca Bernardo e vivia no bairro Villa Crespo, o berço do tango.
Leopoldo e Guillermo esperavam a apresentação começar. Os dois estavam bastante curiosos sobre quem era a senhorita musicista. Admiravam a coragem da jovem, pois um instrumento daqueles exigia que as pernas ficassem abertas e aquele tipo de coisa era impensável, pelo menos até ali, para moças de boa família. Aquela era a razão pela qual estavam presentes naquele local e horário. O café era bastante refinado, como era costume de todos os estabelecimentos daquele estilo. Os dois apreciavam o ambiente, mas nada pediam porque a condição não lhes permitia comer ou beber como duas pessoas normais.
Foi quando o apresentador anunciou a apresentação. Leopoldo parecia ver a própria beleza da lua cheia materializada em uma linda criatura de rosto redondo e grandes olhos escuros cujo cabelo se encontrava preso por rolos que o deixavam incrivelmente grande e destacado. Ele se viu por toda a apresentação com seus olhos totalmente presos a ela e seus habilidosos dedos que percorriam os inúmeros e espalhados botões do instrumento. O movimento podia ser quase considerado um hediondo crime de tão bonito.
- Como disse que ela se chama mesmo? – perguntou ele para Guillermo, este respondendo: - Seu nome é Francisca Cruz Bernardo, mas todos a conhecem por “Paquita”.
- Paquita – suspirou Leopoldo para depois dizer: - Qué encantadora es ella.
- Leopoldo, por favor, eso otra vez no – Guillermo disse com seu indefectível sotaque britânico no meio do espanhol bem falado.
- Guillermo, vamos sair – sorriu ele para depois juntar as mãos alegremente: - Quero comprar o maior e mais bonito buquê de rosas que pudermos encontrar.
A noite tinha avançado. Leopoldo havia encontrado o presente desejado em uma floricultura próxima ao local onde a jovem se apresentava e estava até o momento, fazendo uma refeição. Durante aquele momento, ela recebeu o primeiro dos muitos buquês, e presentes, que ele lhe enviaria nos próximos quatro anos.
Buenos Aires, 1924...
Paquita Bernardo se encontrava um pouco incomodada com as investidas silenciosas daquele admirador que assistia a todas as apresentações, mesmo quando ela havia estado no Uruguai. Todo o conhecimento sobre ele era seu nome, Leopoldo Belmondo, um espanhol muito rico, dono de inúmeras propriedades e títulos do Tesouro Nacional. Embora nunca tivesse tido qualquer interesse romântico durante sua vida, não podia negar o charme dele embora não fosse muito bonito. Até mesmo o achava adorável, considerando que ele jamais havia ultrapassado qualquer limite.
Admirava-se dele nunca ter se aproximado dela para puxar assunto mesmo lhe dando presentes consideráveis. Desde lindas rosas vermelhas, brancas e cor-de-rosa até mimos como peças de vestuário e broches dourados que ela às vezes usava ao se apresentar. Embora achasse melhor não deixá-los à mostra para evitar falatórios. Perguntava-se sobre o tipo de homem que era ele e quais eram suas reais intenções. Confessava somente a si mesma ter certo medo de aproximar-se para perguntar algo. Não sabia a razão, mas bastava vê-lo e a seu sorriso para quase perder a concentração.
Foi quando o empregado do local chegou trazendo outro enorme buquê de rosas: - É para a senhorita.
- Sim, eu sei. Até imagino quem enviou – suspirou ela para depois perguntar: - Ele ainda está por perto?
- Possivelmente deve estar, mas acho pouco provável – respondeu o rapaz para questioná-la em seguida: - Quer que o chame caso o encontre?
- Não é necessário. Eu presumo que a não aproximação dele se deva a ele saber que não nutro interesses românticos – respondeu ela bastante calma embora sentisse seu coração aos pulos e o pulso acelerado.
- Tudo bem, mas, pedindo desculpas pela sinceridade, você é uma linda mulher. Aposto que há muitos pretendentes desejando pedir sua mão aos seus pais – disse o rapaz. Ela sabia dele se chamar Andre, talentoso violinista que às vezes tocava junto ao jovem pianista Osvaldo Pugliese quando este se apresentava solo.
- Aprecio sua gentileza, mas tenho outros interesses, relacionados com a música – riu ela levemente.
Ele se despediu e saiu suspirando, se perguntando por que não vinha a ele a coragem de declarar seu amor a Paquita. Amava-a desde o momento que a vira, jamais podendo esquecer sua primeira visão de tão fantástica criatura. No entanto, os motivos eram claros: ela vivia de sua música e para ela exclusivamente. Não existia uma remota possibilidade de que um dia ela parasse para casar-se e formar família, pois ela não temia possíveis comentários maldosos ou repreensores. Justamente por isso a admirava e a amava tão profundamente mesmo que seus sentimentos nunca fossem correspondidos.
O destino, porém, era o maior pregador de peças do mundo.
Buenos Aires, 1925...
Era madrugada de 13 de abril, pelo menos uma hora e trinta minutos da manhã. Paquita Bernardo se encontrava já muito doente devido a um resfriado mal cuidado convertido em broncopneumonia grave. Mal podia levantar-se da cama sem sentir seus pulmões sendo brutalmente puxados. Estava quase certa de que a morte a levaria em breve. Seu único arrependimento até ali era jamais ter falado com Belmondo sobre seus sentimentos mesmo ele sempre tendo respeitado sua vontade. Descobriu-se, tarde demais, apaixonada.
Não era tarde demais, no entanto. Ou pelo menos era essa a esperança de Leopoldo quando chegou à casa dela naquele minuto. Hipnotizou, em sonho, um dos vizinhos, para permiti-lo entrar no recinto, o que ele fez logo da autorização ser dada. Procurou cuidadosamente o quarto da jovem determinado a salvá-la de algum modo. O problema, porém, eram as chances dela sobreviver ao processo. Dez em cem, segundo as análises frias e precisas de William de Sussex, seu melhor amigo há mais de três séculos e meio que ele preferia chamar de Guillermo, a corruptela espanhola do original inglês.
Entretanto, não desistiria sem tentar, mas, admitia a si mesmo ter esperanças profundas de que tudo daria certo. Amava-a demais para simplesmente desistir. Finalmente achou o local procurado, entrando, com sua delicadeza costumeira, no quarto de Paquita, acordada em razão de o ar lhe faltar. Ela tomou grande susto ao ver Leopoldo ali parado à beira de sua cama, se perguntando o que estava acontecendo.
- Não se preocupe, minha adorada. Nada farei contra sua honra. Só preciso de sua atenção por alguns minutos, disso dependerá sua vida – disse ele para o espanto dela, que sentiu o sangue congelar nas veias com o quão frio era o toque de seu admirador.
- Quem... O que é você? – perguntou ela com voz muito fraca, percebendo algo realmente errado com ele embora não soubesse o que era apesar da certeza agora tida: Leopoldo era um cadáver.
- Você percebeu, não é? – disse ele ao que a musicista respondeu fazendo imenso esforço para falar: - Como você pode estar morto e ao mesmo tempo vivo?
- Eu... – suspirou ele para logo tornar as íris de seus olhos rubras e mostrar duas presas camufladas nos incisivos antes normais. Causou imenso medo em Paquita, que se encolheu quase sem conseguir respirar, arrancando uma reação desesperada dele: - Por favor, minha adorada, me escute. Sei que me teme, mas, tudo o que quero é ajudá-la. Permita-me te dar uma chance, eu imploro! Meu amor, minha... vida!
- Eu... acho... que... tudo bem – disse ela levantando demoradamente com a intenção se sentar-se à cama, onde Leopoldo segurou-a delicadamente nos braços:
- Como esperei por poder tocá-la. Sentir a maciez da sua pele, dos seus cabelos. Poder acariciá-la ternamente enquanto olho nesses teus lindos orbes negros que me conquistaram desde aquele dia em 1921.
- Te quiero... mucho, mi Leopoldo – debilmente ela levantou sua mão para tocá-lo no rosto.
- Yo también, mi dulce Paquita – ele sorriu. De repente o mundo parecia parar mediante uma demonstração de amor tão bela quanto intensa. Um sentimento, naquele caso, diferente, nada parecido com os modos humanos.
A jovem bandoneonista se viu inesperadamente mergulhada em absurdo êxtase. Os caninos longos e afiados dele não lhe causavam dor alguma a despeito de seu sangue estar sendo drenado através de seu frágil e claro pescoço. Pouco mais de dois minutos sugando-a, ele depositou um delicado beijo com a intenção de cobrir o ferimento. Enfim, fez a segunda parte do trabalho: usando sua longa unha, fez um talho no pulso e ofereceu seu sangue a ela: - Alimentate, mi bien amada.
Pouco a pouco, ela bebeu. O líquido negro-avermelhado vagarosamente entrou em seu fragilizado sistema, causando uma súbita melhora. Era como se todos os problemas desaparecessem com um passe de mágica. Contudo, as coisas não eram tão simples. Foi então que ela disse, agora um pouco melhor: - Leopoldo, eu não sei exatamente o ocorrido em um caso desses, mas me prometa: caso isso não dê certo, seguirá sua vida. Sei que me ama muito, mas nunca o quis sofrendo por mim, de forma alguma.
- Sim, eu prometo, minha amada – não era fácil fazer uma promessa daquelas, mas, menos ainda seria caso tudo desse certo, quando ele tivesse de explicar a ela sobre a rejeição ao sol e a sede por sangue. Perguntava-se se tinha mesmo valido a pena condená-la à sina dele. Não raras vezes, Leopoldo sentia o peso da solidão em seus ombros, causado pela longevidade proporcionada pela vida de vampiro, porém, agora finalmente teria com quem compartilhar seus sentimentos.
Embora adorasse Guillermo como a um irmão, Leopoldo sentia muita falta de alguém que aquecesse seu frio leito e seu coração quase congelado pelos acúmulos de amargura. Em seguida do pensamento, decidiu explicar, cuidadosamente, a ela sobre a rejeição ao sol e a sede que viria a sentir, ao que a jovem perguntou tudo aquilo implicaria nunca mais poder aproximar-se dos parentes. Pois se ela havia entendido, a sede não lhe permitiria ficar perto de humanos por muito tempo.
Ele respondeu: - Você poderá ficar algum tempo com seus parentes ainda, porém, terá que se afastar quando eles começarem a notar que você não mudará mais.
- Entendo, mas como eu disse, prometa que seguirá em frente caso as coisas não deem certo – disse ela séria para depois acarinhá-lo mais uma vez: - Não quero que sofra por mim caso não possa ficar com você.
Por mais duro que fosse prometer semelhante disparate, achou melhor acatar o pedido dela porque não queria desapontá-la. Afinal, permitiu que ela dormisse, pois Paquita realmente estava cansada após passar por tão surreal situação. Já ele, deixou-se conduzir pela eterna noite em que vivia.
14/04/1925, três da tarde...
- O senhor... Belmondo se encontra? – perguntou um menino mensageiro.
- No momento ele está ocupado. Em que posso ajudar? – Guillermo havia acordado por estar com algo de sede e ouviu a porta.
- O senhor Andre, aquele violinista que anda tocando com o Pugliese pianista, me enviou aqui para avisar que a... senhorita Bernardo faleceu essa tarde – disse a criança com profunda tristeza.
- Paquita? – Sussex segurou um triste gemido, pensando em como Leopoldo ficaria arrasado ao saber que o processo havia dado terrivelmente errado.
- Sim, a tocadora de bandoneón. Ela era... adorável – o garoto segurava as lágrimas que teimavam em rolar por seu rosto.
- Eu sei. Não apenas era bela, mas também talentosa e amável. Eu darei o aviso – disse ele dando algumas moedas para o mensageiro mirim.
Mesmo dia, final da tarde...
William de Sussex assistiu, com uma mistura de tristeza e pesar, enquanto Leopoldo quebrava o recinto todo e derrubava objetos usando só as mãos, arrasado pela morte da amada que ele tarde demais havia descoberto correspondê-lo: - Por que el destino tiene que ser tan cruel conmigo?! Por qué?! No merezco la felicidad?! No tengo el derecho de querer y ser querido?!
- Leopoldo, você sabia que as chances dela se transformar completamente eram poucas, ainda mais na condição em que ela estava – disse ele em um único fôlego e continuando com tristeza: - E ela estava sofrendo demais, meu amigo. Eu lamento por Paquita, mas você prometeu a ela que seguiria em frente. Aconselho-o a cumprir sua promessa.
- Sim, promessa é sempre dívida, Guillermo. Não é fácil, porém – suspirou ele indo pegar um casaco.
- Imagino que queira despedir-se dela pela última vez – disse Guillermo levantando-se para esperar o amigo sair com ele.
- É o que pretendo fazer. E antes passaremos na floricultura, onde quero encomendar um último presente à minha adorada – disse ele com profunda tristeza. E ela calava tão fundo a ponto de Leopoldo sentir vontade de expor-se à luz solar.
Uma hora havia se passado. Belmondo e Sussex haviam chegado ao velório de Paquita Bernardo portando uma grande e caprichada coroa de flores com rosas em três tons diferentes: vermelho, branco e cor-de-rosa.
Arturo e Enrique, dois dos seis irmãos da jovem falecida, já sabiam, pela conversa tida com ela na noite anterior ao falecimento, que Leopoldo era um possível pretendente a casamento. E a mesma havia se apaixonado por ele mesmo mal o conhecendo. Os dois aceitaram educadamente o belo adorno e permitiram o espanhol se aproximar para uma última despedida, pedindo que ele fosse rápido. Queriam evitar maiores comentários, considerando que a morta era solteira e não pensava em relacionamentos.
Tocou delicadamente as mãos que tantas vezes haviam tocado o bandoneón agora órfão sobre uma cadeira próxima ao caixão. Disse com profunda emoção na voz: - Quem dera tivéssemos tido uma oportunidade para viver o nosso amor. Eu a teria levado muito além das estrelas e te daria todas de presente se me pedisse. Não importa quanto tempo se passe, eu vou te amar. Amar-te até o fim dos dias.
Coroando as palavras que comoveram os irmãos e pais da jovem de uma forma inexplicável, Belmondo pegou três rosas, nos tons da coroa trazida, e colocou-as nas delicadas mãos da moça velada para depois inclinar-se sobre ela em um doído pranto de silencioso adeus.
- Você realmente a amava, não é? – Enrique, o irmão que a levava aos shows em seu táxi, aproximou-se.
- Por mais próximo que você fosse de Paquita, você talvez nunca entenda o quão grande era meu amor por ela. Eu sabia, porém, que ela nunca se interessou por romances porque sua verdadeira paixão era a música. Sempre respeitei este limite e continuarei fazendo-o, se não me desejarem por perto por razões envolvendo a reputação dela – respondeu ele com tal firmeza que acabou por despertar imensa admiração em todos os presentes, que tristemente o saudaram pela perda da amada.
Ao término daquele momento, Leopoldo Belmondo deixou o funeral junto de Guillermo de Sussex. Naquela noite, nada sentiu além de uma sensação terrível de vazio emocional. Sequer teve sede, passando todo o tempo olhando para o teto, deixando seu melhor amigo preocupado. Ele francamente esperava que aquilo fosse só um momento do luto vivido.
15/04/1925, noite do dia do enterro...
A terra parecia se mexer. Alguma coisa tentava abrir passagem entre o monte de marrom que ali existia. De repente, uma mão. Depois, um antebraço. Logo veio um braço inteiro e as unhas seguravam com força usando o chão acima como apoio. Finalmente, um corpo inteiro e uma respiração ofegante cortando o ar com incomum força. O vento balançou o vestido, imundo em razão da terra da cova, mostrando que o cadáver revivido era uma mulher. Três flores quase intactas pendiam presas a uma das mangas devido aos espinhos.
- Estou... viva? – ela se perguntava ao ver que seu antes túmulo se encontrava vazio. Espantava-se com o tamanho de suas unhas, agora grandes como garras e afiadas como facas.
O vento noturno continuava cortando o sepulcral silêncio do Cemitério da Chacarita. Enquanto ela parecia cortar o ar em movimento com seu andar cadenciado e os cabelos agora soltos confrontando a cor da noite. Como não conhecia bem o local, sentia-se perdida. De repente, colocou uma mão sobre a garganta que repentinamente ardia. Inúmeros odores vinham ao seu olfato mudado: tabaco, café, terra, flores, álcool e um inicialmente não identificado, mas que ela soube o que era quando viu o zelador noturno. Um estranho instinto. Pensou ela ao perceber que o odor recém-identificado era nada menos que sangue.
- Leopoldo me disse sobre eu sentir sede por sangue. É isso então? Deus – pensou apreensiva enquanto observava o homem andando em redor dos túmulos próximos à entrada. Não desejava matá-lo, porém, estava literalmente morta de fome. Foi quando sua visão se tornou uma mistura de vermelho e negro e seus caninos antes normais se transformaram em duas presas brilhantes e belamente animalescas. Ela esqueceu qualquer noção de civilidade e partiu ao encalço do homem que seria sua presa, quando seus instintos a alertaram para alguém atrás: o coveiro da noite tentando decapitá-la com uma pá.
Sua delicada mão esquerda, que agora possuía sobre-humana força segurou o pulso do homem, que gritava sem parar: - Por Dios, una muerta caminante! Alguien acúdame!
Com a outra mão, jogou longe a pá, agora apenas um objeto sem uso. Logo estava usando suas novas “armas bucais” para se alimentar do sangue daquele homem. Quente e fresco, exatamente como ela precisava. A sensação era estranhamente maravilhosa. Cada gota daquela vida sendo alimento para a sua nova existência. Sentia-se renovada, como se pudesse deixar tudo para trás. Entretanto, ao perceber que havia matado, abandonou o cadáver, horrorizada com seu feito. Seu vestido antes apenas imundo pela terra agora se encontrava empapado de sangue na parte do peito. Quis gritar, socar qualquer coisa que estivesse ao seu redor tamanho seu horror mediante a constatação de ter se tornado um monstro assassino.
Foi quando o princípio de um grito se fez, para ser bruscamente interrompido pelo que parecia um puxão. Quando ela olhou, viu uma criatura magra debruçada no pescoço do zelador, debatendo-se tentando escapar. Paquita viu que o homem vestido de preto era um vampiro como ela e o mesmo devia estar esfomeado, tamanha a vontade ao sugar a vida do pobre homem, finado ali mesmo, brutalmente marcado. Ficou estática ao ver quem era a pessoa, tentando tampar uma exclamação de espanto: - José Betinotti?! Por lo amor de Dios!
Limpou a boca com um guardanapo que claramente havia sido surrupiado de algum restaurante e olhou para a vampira recém-nascida: - Você está imunda, niñita. Precisa de um banho e roupas limpas.
- Eu sei – disse ela desesperada enquanto tentava apagar de sua mente aquelas imagens de morte de sangue.
- Imagino que está assustada com que fez, porém, acostume-se, é assim que nós vivemos: matando para obter nosso alimento. E esses dois não eram lá grande coisa: ambos ex-presidiários condenados por crimes horríveis, os únicos a aceitarem trabalhar no cemitério de noite – seus caninos enormes e pontudos ainda estavam em evidência nos lábios enquanto ele ria.
- Eu me... – ela tentou terminar a frase, mas foi interrompida: - Sim, sim, você se recusa a fazer isso, mas terá que fazê-lo se quiser sobreviver. A não ser que você pense em beber o sangue insípido de bichos. Até você pode, mas, qualquer um mais inteligente vai logo perceber que você não é normal por conta que você é branca feito leite.
- Para um pajador urbano, você não preza muito pela delicadeza – disse ela um tanto séria ao que ele se ofereceu: - Eu te levo para onde moro. Não tenho muitas roupas de mulher, mas, acho que alguma das minhas pode te servir enquanto seu mestre não perceber sua mudança.
- Leopoldo com certeza pensa que estou morta! – exclamou a musicista ao que ele abriu a boca em um “ó” imenso:
- Leopoldo Belmondo?! Você... sobreviveu ao sangue dele?! Nossa, mas você é sortuda!
- Não sei como aconteceu, mas, estou aqui, de volta. Uma assassina chupadora de sangue – disse ela ajoelhando-se e caindo em prantos.
- Ah meu Deus, não gosto de ver mulheres chorando. Senhorita, eu acho melhor nós sairmos daqui e irmos até a casa da minha mestra María Luna. Ela vai saber como lidar com você e avisar ao irmão dela sobre seu retorno – disse ele oferecendo ajuda, que ela aceitou apesar de não conhecê-lo direito para em seguida perguntar: - Sua mestra e Leopoldo são irmãos?
- Credo, você não prestou nenhuma atenção ao que eu disse – falou Betinotti para depois olhá-la: - No entanto, não me admiro, afinal, imagino que ainda está confusa. Também fiquei assim quando emergi do meu túmulo, que por sinal é bem próximo ao seu. Depois de me alimentar pela primeira vez, porém, eu sabia que havia nascido para ser vampiro.
- Não estou certa de ter “nascido para ser vampira” – disse ela, novamente em pé.
- Se Leopoldo te deu esse presente, quem você pensa ser para recusá-lo? – perguntou ele sorrindo agora com normalidade ao que ela refletiu sobre aquela situação. Ela confessadamente não sabia o que esperar do presente e do futuro. Só sabia de o passado ter sido definitivamente abandonado.
Uma hora depois, casa de Leopoldo Belmondo...
- Você não se alimenta há quase dois dias, meu amigo. Deste modo você não conseguirá sequer andar – Guillermo encontrava-se preocupado com a “estase” de seu amigo, mais pálido do que nunca e apresentando olheiras roxas e fundas.
- Dejame en paz, Guillermo. Quiero morir – respondeu ele completamente imóvel.
- Leopoldo, pelo amor de Deus, pare com isso. Sua letargia está acabando com minha tranquilidade! – exclamou Sussex perto do desespero.
Batidas inesperadas na porta fizeram Guillermo dar um pulo da poltrona. Foi atender se perguntando quem estava indo incomodá-los àquela hora da noite, quando viu Betinotti dizendo em um único fôlego: - Boa noite, Guillermo. Como está? Tenho ótimas notícias para Leopoldo.
- O que poderia animá-lo depois de perder Paquita para a morte definitiva? – o britânico se encontrava profundamente consternado pelo ocorrido e pelo estado letárgico-depressivo do amigo.
- Reconhece isto? – as rosas, que haviam adornado as mãos da agora vampira, estavam com o pajador.
- Você quer dizer que...? – Guillermo não acreditava no que via e logo gritou: - Belmondo, levantate!
- Te dije para dejarme en paz! – exclamou o vampiro com tristeza ao que o outro voltou e o agarrou pela roupa:
- Paquita vive, su imbecil! Ella se transformó por completo!
- Estás cierto de eso?! – o espanhol se levantou a muito custo, ainda não crendo que sua amada havia voltado da morte.
- O cheiro dela está muito forte nas rosas que o Betinotti trouxe. Eu reconheceria de longe aquele odor – disse ele com um misto de incredulidade e felicidade. Segurava um enfraquecido Leopoldo em seus braços, pois este mal conseguia manter-se em pé devido à falta de alimento.
- O irmão da minha bela mestra está muito mal. Quer que eu busque alguém fresco para ele? – José adentrou o recinto com cuidado para não parecer invasivo.
- Não é preciso. Temos suprimentos o suficiente quando essas coisas acontecem – disse Sussex deixando Leopoldo na poltrona antes sua e chamando as duas empregadas que trabalhavam para eles.
Betinotti testemunhou a insólita cena de Belmondo alimentando-se de pelo menos três litros de cada jovem, sendo monitorado por seu fiel escudeiro. Cruzou os braços, sorridente, ao ver que Leopoldo havia voltado à sua imponência de costume. Esperou até os dois estarem prontos para sair com ele.
Os três dirigiram-se à casa de María Luna, onde a vampira os recebeu calorosamente, dando especial atenção ao pupilo de quem ela se orgulhava profundamente. Sussex e Belmondo se viram rindo, mas se sentiam melhores ainda com a boa nova. A maravilhosa notícia que se encontrava em uma tina de água tirando a terra e o sangue que haviam se impregnado em sua pele e roupas. Paquita naquele momento usava a esponja coberta de sabão que lhe havia sido dada pela “cunhada” que tão bem a havia recebido.
Foi quando ele entrou no quarto após ser informado de onde ela estava. A vampira recém-surgida cobriu as “vergonhas superiores” e virou o rosto: - Eu matei um homem, Leopoldo. Como lidarei com isso?
Ele aproximou-se carinhosamente: - Isso já me aconteceu quando eu era um principiante. Irei ajudá-la a se controlar, não se preocupe. Você precisa confiar em mim. Eu amo você, minha adorada.
Ela sorriu apesar de por dentro estar destroçada. Pensava no que havia deixado para trás, porém, teria tempo para pensar nisso. Também para se acostumar aos novos tempos, às novas regras, aos anos que viriam, aos adeuses que daria. Suspirava feliz ao sentir as mãos de Leopoldo lavando seu cabelo com o xampu. Talvez fosse o momento de experimentar a felicidade nos braços de seu amado.
E foi a primeira vez que ela experimentou viver um romance. Um belo e imortal amor que havia começado em 1921.
Personagens não-históricos desse conto: (E como a autora os imaginou...)
Leopoldo Belmondo: Espanhol nascido na região da Cataluña no começo do século dezesseis, Leopoldo veio para a Argentina junto de colonizadores espanhóis em meados de 1530, já transformado, junto da irmã María Luna, então humana. Não se conhece muito de seu passado ou sobre como se tornou vampiro, só se sabendo que ele tinha em meado de 33 anos quando morto. (Se algum de vocês já jogou algo da franquia "Castlevania", vai entender de onde tirei o sobrenome do vampiro em questão.)
William (Guillermo) de Sussex: Britânico, data de nascimento desconhecida, mas presume-se que tenha sido transformado pelo menos dez ou vinte anos antes de Leopoldo pelo mesmo vampiro. Sempre está ao lado de Belmondo embora às vezes ache as atitudes dele um tanto estranhas ou humanas demais. Aprecia boa leitura e é como um irmão mais velho para Paquita, a quem apelidou de "Little Butterfly" (Pequeña Mariposa).