La primera noche de los espantos
A manhã estava fria. Um pouco menos do que geralmente ocorria no inverno argentino. Faltavam dez minutos para as sete da manhã do dia oito de setembro de 1938. Rebeca recém havia aberto a floricultura.
Como de costume, a jovem, uma florista de recentemente completos vinte e três anos, pôs sua bolsa sobre o balcão antes de ligar o rádio. Ela sabia que Loyola gostava de ouvir as notícias e as músicas enquanto trabalhava. Seu amigo, também patrão, sempre chegava por volta das sete e meia. E sempre lhe dava todas as instruções antes da chegada de prováveis clientes embora a moça já as soubesse de cor. E era quase sempre ela a cuidar das plantas da estufa, pois Rebeca parecia ter o talento natural para tal prática.
Retirou sua bolsa para outro local antes de trocar seu casaco pelo avental e luvas de trabalho. Já pronta para começar o dia, tratou de colocar alguns vasos em exposição na entrada da loja. Enquanto trabalhava, orava. Rezava para que Agustín Magaldi se recuperasse da cirurgia feita 21 dias antes. Ela sabia, porém, pelas notícias do plantão radiofônico, que a situação dele era muito grave. Um risco de vida muito alto. Suspirou, ao fim. Não era como se algum dia um homem famoso e elegante como ele olhasse para alguém como ela. Nunca entendeu porque seu coração havia lhe aprontado tal “broma”.
Nunca o tinha visto de perto embora fosse aos shows sempre que podia. Não raras vezes oferecia-se para trabalhar nos bastidores das apresentações na tentativa de aproximar-se apenas para vê-lo. Quem sabe trocar algumas poucas palavras. Comprava as gravações com o que sobrava de seu salário ou as ganhava de seu vizinho, um corcunda chamado Juan Pablo. No entanto, ainda assim era incapaz de compreender os motivos de nutrir tal sentimento por ele. Era como se o destino quisesse dizer algo que ela via-se incapaz de entender. E assim os minutos foram passando.
Foi quando mais um plantão de notícias surgiu tal qual um relâmpago. O vaso segurado por Rebeca partiu-se em contato com o solo quando a voz do locutor anunciou o “deceso” da “Voz Sentimental de Buenos Aires”. Eram sete horas quando uma crise hepática desencadeou o falecimento agora anunciado. O corpo seria levado ao Luna Park para ser velado durante 24 horas. O enterro seria amanhã, no começo da tarde, no famoso Cemitério da Chacarita.
Loyola chegou ao local no exato momento em que sua funcionária limpava a terra espalhada pelo chão. Imediatamente notou que ela escondia o rosto molhado de lágrimas embaixo do trabalho de limpeza. Sabia do triste fato consumado. E tinha certeza de ter sido por causa dele que sua adorada amiga havia derrubado o vaso. As ruas apinhavam-se de gente querendo saber mais detalhes do ocorrido e/ou aonde seria feita a despedida final. As mulheres choravam como se uma lâmina as perfurasse. Os homens consternavam-se por uma voz tão bela calar-se cedo demais. Ele, no entanto, sentia uma energia muito estranha. Algo estava demasiado errado...
- Acabei de saber. A Argentina toda o amava. É muito triste ver alguém tão bom ir embora assim tão jovem.
- A Morte é a única coisa para a qual não se pode achar uma maneira. Todos nós temos de estar prontos quando Ela vier nos buscar. O papá costumava dizer isso – Rebeca havia limpado as lágrimas, mas elas ainda não haviam secado.
- O Tsekub era um homem muito sábio. Lembro-me dele dizer também que no fim, tudo o que fica são as boas lembranças. E sempre que quiser, você poderá ouvir a voz de Magaldi – respondeu ele com certa tristeza, pois sabia de o cantor ser em parte culpado pela jovem não corresponder a seu amor. O dono da floricultura amava sua funcionária desde alguns anos, quando a havia contratado para ajudá-lo com o estabelecimento. Recordava-se de quando a recém-formada Rebeca havia chegado à loja, indicada pelo dono da venda próxima aos cortiços aonde a então mocinha vivia.
A florista havia se formado como professora primária após completar a escola, mas nunca havia sido docente em nenhuma. Não porque fosse incompetente, mas por ser bonita demais. Ninguém, porém, admitia ser esse o motivo para não aceitá-la. Era um preconceito velado, e ademais, absurdo. Rebeca, porém, era mesmo linda. Uma pele clara e macia pontuada por carnudos lábios, um nariz belamente esculpido e olhos de chocolate. Como se não bastasse possuir lindo rosto, ainda tinha cabelos escuros, longos e cacheados da parte espanhola da mãe. E de soma, um corpo muito bem servido.
Tal conjunto deixava a maior parte dos homens da vizinhança desejosos de conquistá-la e/ou levá-la aos seus leitos. Loyola, porém, sonhava em casar-se com ela e torná-la mãe de seus filhos. Entristecia-se, no entanto, sabendo que a jovem não o correspondia. Jamais havia lhe dito algo sobre seus sentimentos, mas, conhecia-a o suficiente para saber disso. Contentava-se por pelo menos ser seu amigo. Isso já era o bastante.
- Você... me libera para acompanhar o enterro amanhã? – perguntou a moça receosa.
- Está no seu direito, Rebeca. Escolha as flores que quiser para levar ao cemitério – respondeu ele amavelmente.
A jovem agradeceu sorrindo tristemente, pois vê-lo pela última vez seria muito doloroso. Ela não imaginou, mas o dia seguinte mudaria para sempre todos os seus conceitos.
...
O cadáver de Agustín Magaldi já estava pronto para o transporte até o Luna Park. Faltavam vinte minutos para a nona hora da manhã. Um dos legistas estava desconfiado...
- Ele parece bem demais para quem esteve tão mal.
- Ora, do que você está falando, Loredano? Está olhando o coitado como se ele tivesse alguma doença contagiosa – disse o outro legista achando aquela atitude muito absurda.
- Para quem se diz formado com láureas, você não é lá muito observador, Fortesconi – respondeu o homem examinando o pescoço de Magaldi. Nada percebendo de estranho, mas ainda sim desconfiado de algo que não ousava dizer em voz alta, ele colocou um pequeno crucifixo na boca do cadáver. Em seguida, fez um sinal da cruz sobre ele e pôs um dente de alho embaixo de uma das mangas do terno.
- Por favor, amigo, não é a coisa mais anormal do mundo um cadáver mostrar-se com mais viço no post-mortem. Até parece que ele é o primeiro – disse o colega suspirando para depois perguntar: - Isso é algum ritual que vocês fazem lá de onde você veio?
- É uma maneira de dizermos adeus a quem amávamos. E protegê-los dos maus espíritos. Se você soubesse quantos deles tem por aí, você não andaria com essa cara despreocupada todo o tempo – Loredano disse com tal seriedade que assustou seu companheiro de trabalho.
- Credo, você diz cada coisa! Não é à toa que te chamam de doido! – o médico de “apellido” italiano via-se espantado.
O legista mais velho, cuja nacionalidade era conhecidamente romena assim como sua corcunda, ignorou o comentário do “gringo”: - Melhor nós sairmos, o pessoal da funerária chega daqui cinco minutos para levar a “La Voz Sentimental de Buenos Aires”.
Fortesconi assentiu enquanto o homem se retirava. Disse em seguida que tinha de ficar por ser o encarregado dos papéis da funerária. Loredano respondeu para ele ser rápido e preferencialmente, deixar Magaldi como estava. O legista de origem itálica retirou o crucifixo da boca do morto e o dente de alho da manga após finalmente estar sozinho com ele. Achava completamente absurdas as convicções do colega. De onde ele havia tirado aquilo sobre espíritos malignos estarem cobiçando aquele pobre homem cuja alma agora se encontrava junto do Bom Senhor Deus?
Se bem que ele estava estranhando duas coisas naquele cadáver: as unhas pareciam ter crescido pelo menos três centímetros e a arcada dentária mostrava uma alteração muito esquisita para o gosto dele. Bem que tentou ignorá-las, mas não pôde. Era como se algo muito errado acontecesse e o médico não conseguisse encontrar aonde o erro estava. Suspirou, por fim, achando estar vendo coisas onde não existiam. Saiu, dando espaço aos agentes funerários.
Teve a leve impressão de ouvir um delicado ressonar. Achou, no entanto, que devia ser algum guarda dormindo em serviço. Ele muito se arrependeria de não ter ouvido Loredano.
...
Sexta-feira, nove de setembro...
Desde a manhã não havia espaço para passeio normal nas ruas. O movimento era tão grande que Rebeca mal podia passar. A saia de seu vestido preto era constantemente levada de um lado a outro por incontáveis passantes incapazes de um pedido de desculpas. Muito custosamente mantinha intacto o belíssimo buquê de rosas colombianas trazido consigo. Como as pessoas podiam ser mal educadas quando um fato daqueles ocorria, pensou ela enquanto seguia o inacreditável cortejo.
Mulheres atiravam flores sobre o caixão a muito custo carregado pela polícia desde o Luna Park, de onde saíra em direção à Rádio Belgrano. Os homens, por sua vez, faziam absurdo silêncio. Não era nada fácil movimentar-se no meio daquela multidão e menos ainda ficou quando o ataúde deixou a emissora em direção à Chacarita. Afinal chegaram ao cemitério. Houve um discurso de despedida dado por Don Jaime Yankelevich e depois Francisco Canaro. Novamente o movimento ficou impossível, com a polícia tendo que abrir caminho para levar o ataúde ao Panteão de Artistas, mais precisamente no de Autores e Compositores de Música, onde o corpo de Agustín Magaldi ficaria temporariamente.
Mesmo depois de o caixão ter sido depositado, abaixo de imensa comoção popular, muitos, incluindo amigos e familiares, permaneceram no cemitério. Incontáveis coroas, buquês, flores avulsas e toda a sorte de arranjos foram sendo colocados na tumba, que de repente parecia uma floricultura inserida em local inapropriado. A fila era tão imensa que a jovem florista esperou pelo menos quatro horas até ser capaz de colocar seu buquê cuidadosamente escolhido sobre as outras inúmeras flores. Pensava em sair imediatamente dali quando viu um grupo de homens andando em volta dos túmulos adjacentes. Escondeu-se no jazigo ao reconhecê-los. Era o grupo de rufiões liderado por “Felipe, o bardo”, um conhecido encrenqueiro das redondezas de onde ela morava.
Rebeca, de dentro, no canto mais discreto possível, observou enquanto eles decerto procuravam encrenca. Não podia imaginar a razão dele estar buscando tal coisa em pleno dia de um funeral. Tinha ciência sobre aquele bastardo desejá-la desde ela ter dezessete anos. Nunca havia cedido a nenhuma das investidas do safado. O detestava. Sabia o quão mau caráter ele era. A florista, porém, tinha muito medo, razão pela qual ficou ali prolongado tempo, mesmo sabendo da mãe já estar com ela preocupada. E especialmente da hora estar avançando a largos passos tal como uma sombra querendo possuir a tudo.
A moça gritou de susto ao ser tocada. Aliviou-se ao ver que era um trabalhador do cemitério, que lhe disse:
- Deus, que faz a senhorita por aqui nestas horas nefastas da noite?! Sorte sua que eu e Paco conferimos o local antes de fechar a porta! Senão a senhorita ia ter que pernoitar com os mortos!
- E duvido que você iria gostar de ficar aqui toda a noite! – exclamou o acompanhante do senhor de cãs.
- Não entendo – disse Rebeca surpresa com quanto assustados eles estavam.
- Melhor vir conosco. Quanto mais rápido estiver fora daqui, mais segura estará – disse o mais velho apresentando-se como Mario.
- Segura do que? – perguntou ela apavorada com aquela maneira de falar. A resposta de repente ficou mais clara do que ela desejou. Uma porção de vultos surgiu do nada. A maioria vestida de negro da cabeça aos pés. Eles observavam, mas não a ela. E sim o Panteão de onde ela acabara de sair após horas escondida. Rebeca perguntou quase sem voz: - Isso é?
- A visão do Inferno – disse Paco igualmente quase mudo de pavor e Mario fez o sinal da cruz usando um ramo de arruda: - A obra do Demônio!
- Como...? – a florista parou e olhou para trás. Viu intensa fumaça branca cobrir metade da altura do jazigo assim como eles, que empalideceram ao perceber o ocorrido...
- Quem foi tão ousado de cometer tal atrocidade com ele?! Por Deus, um homem de alma tão pura convertido em uma coisa chupadora de sangue! – o velho pôs uma mão sobre a boca para tampar um grito.
- Não...! Como assim?! – exclamou a florista apavorada ao ouvir semelhante coisa.
Os dois homens nada disseram. Trataram imediatamente de correr com ela o mais rápido possível para um local seguro. Menos mal que as criaturas não prestaram um minuto de atenção sequer neles, ou senão estariam muito encrencados. Mal viraram uma esquina dos jazigos quando uma saltitante criatura de fraque colorido e uma chamativa cartola apareceu diante deles: - Não querem ficar para ver o espetáculo sanguinário desta noite? Prometo que serão apenas plateia. O alimento já está sendo providenciado para nosso novo astro.
A florista horrorizou-se ao reconhecê-lo. Quase desmaiou. Ficou próxima de dar um grito. Foi levada para a antiga casa do zelador enquanto Juan Pablo chegava ao cemitério em busca da senhorita. E um vampiro recém-nascido enfim saía da montanha de flores que o cobria ainda “fedendo” ao odor enjoativo das mesmas. O neófito, cujo nome era tão conhecido e amado, não compreendia como estava ali. Em pé diante de onde antes dormia um sono do qual parecia não mais acordar, tão morto quanto era possível de compreender. E cercado por incontáveis vultos de negro oferecendo-lhe presentes. Pareciam dizer-lhe: “Bem vindo de volta, Don Magaldi”.
Uma bela ruiva oferecia-lhe um medalhão dourado. Um negro com alguns cabelos brancos, uma caixa contendo uma refinada caneta-tinteiro. Um maluco saltitante cobrira sua cabeça com uma cartola preta pelo menos duas vezes o tamanho da circunferência.
- O senhor queira me desculpar, mas acho que você errou o tamanho do presente. Ou o que isso seja – foi a primeira coisa dita pelo vampiro recém-nascido, que se livrou da vestimenta.
Outros tantos vinham com os mais variados “regalos”: lenços, camisas de linho, cintos de couro refinado, perfumes masculinos, etc. Menos mal que não eram flores, pensou Magaldi. Já estava enjoado daquela mistura de odores. Deus, como tinha sido difícil sair do meio de todas aquelas plantas. Instintivamente, havia se transformado em névoa. Surpreendeu-se com tal habilidade. Estava, porém, apreensivo. O que afinal aquela bela senhorita com quem ele vinha sonhando há algum tempo tinha feito com ele? Ela era... como ele era agora?
Magaldi tinha ciência de ser um morto-vivo. Recordava-se de todo o ocorrido durante seu velório de todo um dia e do enterro. Das flores depositadas, dos prantos chorados... De sua “hermosa morochita” vestida de luto e portando um lindo buquê de rosas colombianas. Sorriu ao recordar-se dela. Desejou saber seu nome e agradecer-lhe pela linda lembrança. Segurou na mão direita uma das belas flores vermelhas. Cheirou-a profundamente. O delicioso cheiro dela estava ali impregnado. Seus dedos agora frios como a Morte acariciaram a flor. Sentiu cada detalhe daquele objeto de repente mais vivo do que ele se lembrava.
Impressionou-se com o apuro de seu olfato agora evoluído, pois soube exatamente aonde ela se encontrava. Não apenas isso. Podia sentir o aroma de cada coisa “cheirável” ali existente. Café, álcool, terra, flores, perfumes femininos e masculinos, shampoos, loções de barba, géis de cabelo, outros. Cada coisa possível e imaginável. De repente, a garganta ardeu como jamais antes fizera. Era uma estranha sensação. Foi quando alguém cercada de vultos negros e ladeada por um enorme lobo negro de olhos verdes aproximou-se com um homem desacordado: - Hermano mío, es hora de la cena.
Era a senhorita dos sonhos! Lembrou-se de histórias ouvidas há anos. Reconheceu-a, afinal. Recordou-se da leve dor no pescoço sentida quando acordava, pelo menos uma vez ao mês. Às vezes ficava um pouco pálido, mas isso já lhe era comum, pois todos o descreviam como um homem bonito e muito claro de pele. Percebia-se com um misto de sentimentos variando entre a expectativa e a raiva. Expectativa porque era muito curioso. Raiva porque percebeu agora ser incapaz de voltar à sua antiga vida. Era verdade que não desejava morrer por querer ser um bom pai para seu filho, mas aquilo havia ultrapassado os limites.
- O que pensou quando...?! – as palavras morreram quando ele percebeu enfim o motivo da ardência de sua garganta. As veias pulsantes daquele rapaz, ali inconsciente, o faziam ter elevados instintos assassinos. Passou a língua pelos lábios e em seguida sentiu alguma coisa escapando de suas gengivas. Além da visão inesperadamente “roja”. Logo percebeu ter presas. E soube ser com elas capaz de morder aquele pescoço ali exposto. Impiedosamente mordeu. O ruído de sucção logo chamou a atenção dos outros vampiros ali presentes, agora observando se ele o mataria ou se apenas o deixaria seriamente doente.
Ele parou após sugar um pouco. Delicados filetes escorriam pelos cantos de sua boca. O jovem humano ali presente tinha agora uma feia marca na jugular. Agustín vagarosamente desfrutou o sabor agora doce do sangue humano. Era como vinho, daqueles bem doces. Pelo menos no ponto de vista dele, agora um vampiro. Perguntou a si mesmo se algum humano alguma vez havia provado sangue sem necessariamente ser um sugador do mesmo. Achava bem pouco provável, porém, talvez houvesse.
Sobressaltou-se ao notar o humano desperto. Ele tentou levantar-se, mas foi contido por Magaldi, que sorriu de novo. Não era, porém, um sorriso amistoso de quem oferecia ajuda. Era de satisfação pelo belo jantar oferecido, principalmente porque o vampiro reconhecia aquele bastardo. Recordou-se de quando o puseram para fora de um de seus shows em razão dele ter tentado investir de forma indecente contra uma senhorita. Soube, pelo pensamento dele, naquele instante, dela ser a bela morocha de seus sonhos de quem ainda não tinha o nome.
Nenhum homem naquele planeta iria agir daquela forma e sair sem punição. O vampiro novamente o mordeu. Novamente sem piedade. A sucção fora bem mais intensa e violenta. A florista, escondida na casa do zelador, testemunhava todo aquele acontecimento chorando de forma quase convulsiva. Infelizmente o único local seguro do cemitério era aquela pequena casa quase encravada entre as criptas. Tinham sido ali colocados alho e arruda, para manter afastados os seres malignos. E os coveiros preferiam manter visão considerável das criaturas, pois nunca se sabia quando haveria chance de matá-las em seus caixões.
E elas nunca chegavam, para o desespero deles.
Era o mais horrível pesadelo que Rebeca já vivera até então. Não conseguia entender como uma coisa daquelas podia acontecer. Deus decerto não era responsável por tal horror. Pois Ele era demasiado bondoso para condenar seus filhos aquela sina homicida. Aquilo poderia combinar com as teorias de Darwin que Tsekub lhe ensinara quando ela era tão somente uma menina? Não! A morte não tinha volta, pelo menos era a teoria na qual acreditava até então. Era um fim para um novo meio, segundo as Sagradas Escrituras que Doña Jazmin lia para ela todas às quartas feiras. Naquele caso, porém, a morte de Magaldi o levara para algo horrivelmente pior.
A jovem fixamente olhou enquanto Felipe, o bardo, era atirado ao chão tal qual um saco de batatas podres. Estava certa de que ele estava morto. Sugado até a morte pelo ídolo popular Agustín Magaldi, agora limpando os cantos da boca usando um dos lenços presenteados. O vampiro, no entanto, embora aparentasse calma, por dentro encontrava-se estupefato com o fato de ter matado alguém ao alimentar-se. Era verdade que aquele maldito merecia um severo castigo por seus atos maldosos, mas não achou necessário chegar tão longe. Entretanto, chegou. Seria obrigado a aceitar isso. Perguntava-se, porém, se realmente estava pronto para “viver”.
O outrora humano e cantor popular não entendia porque aquela bela vampira de pele clara e longos cabelos escuros o tinha transformado naquilo. Lembrava-se de quando ela dizia-lhe sempre a mesma resposta: “Você é especial. Salvará o mundo de uma desgraça.” Sim, agora sabia qual era a palavra. “Vampiro”, isso era agora a sua nova realidade. Uma que ele não esperava nem se tivesse sobrevivido aos problemas hepáticos. Na verdade, ele tinha sobrevivido, mas de outra forma. Contudo, matar pessoas no intuito de alimentar-se seria considerado correto, dada aquela circunstância? Aquela era apenas uma de pelo menos milhões de perguntas em sua cabeça.
Os olhos arregaladamente abertos do rapaz ainda encaravam algo vazio. Magaldi, incomodado com aquilo, abaixou-se e cerrou-os. Tinha a certeza de que levaria consigo aquela imagem até o fim do mundo. Prometeu a si mesmo tentar controlar sua sede, mas seria só tentativa, pois ele não sabia como faria. O cheiro do sangue o transtornava, o fazia querer matar para obter mais.
- Ainda tem fome? – perguntou a vampira cujo nome e lenda bem conhecia: Rufina Cambaceres, a jovem duas vezes morta.
- Não – Magaldi não sabia se era adequado cobrar as respostas das quais necessitava. E como ela pudesse adivinhar seus pensamentos, disse: - As respostas virão no devido tempo. Melhor irmos agora. E eu te aconselho a por enquanto não procurar a jovem de quem você gosta. Ela está completamente transtornada e traumatizada depois de tudo o que viu.
- Achei... qualquer coisa – Agustín não tinha a menor ideia de como reagir aquilo tudo.
- Ela estava no local errado e hora mais errada ainda. Essas coisas acontecem com qualquer um – respondeu ela com a mesma expressão calma.
De repente, ele explodiu. Gritou como jamais fizera em toda a vida. Passou a mão pelos cabelos na tentativa de conter o terrível nervosismo sentido. Rufina colocou a mão em seu ombro para acalmá-lo. Conseguiu fazê-lo apesar da dificuldade. Disse: - Eu também já me senti assim, Don Magaldi. Você vai acabar se acostumando.
Após aquele momento, o cemitério ficou tão quieto como se esperava de uma necrópole como a Chacarita. Alguém, escondido entre as tumbas, enfim pôde andar até a casa do zelador. Seu coração batia descompassado depois de testemunhar algo tão horrível. Por Deus, como assim era ele?! Quanta coragem tinha quem condenou aquele homem de bem àquela horrível sina! Estava certo da segurança de Rebeca. Conhecia Mario muito bem para saber que ele jamais permitiria algum deles tocar um só fio de cabelo da senhorita.
O velho Juan Pablo já não tinha mais cacife para suportar tal coisa. As lembranças de seu tempo como “empregado” de um nobre europeu lhe traziam as piores sensações. Daria sua vida, se preciso, para livrar-se daquelas horríveis recordações da infeliz outrora de sua vida que graças a Deus não voltava mais. Suspirou triste mediante a visão e sentiu legítimo horror diante do fato de que mesmo ali o Mal estava na sua forma mais monstruosa.
Enfim, ele bateu à porta da casinha. Mario atendeu ao vê-lo pela janela: - Graças a Deus alguém veio buscar a pobre menina! Ela não conseguirá sequer andar sozinha depois de tudo isso!
- E logo eu não sei disso?! – exclamou o corcunda nervoso para depois perguntar: - Tem forma segura de sairmos daqui? Eu não vou andar o caminho de volta até a porta com essas criaturas por aí!
- O alçapão que fica no outro cômodo – disse Paco apontando a única porta existente além da de entrada.
- Obrigado – respondeu o homem enquanto a florista se levantava ainda transtornada e lacrimosa. Juan Pablo abraçou-a forte sem nada dizer. Apenas desejava vê-la sentir-se segura.
Naquela noite terrível, Rebeca só balbuciava coisas sem sentido e nada tinha conseguido contar sobre as razões de sua demora em chegar à sua casa. Ainda chorava como jamais fizera em toda sua vida. Os vizinhos a viam completamente transtornada e não compreendiam as razões para tal coisa. A pobre moça quase não havia dormido. Só o fizera graças a um sedativo dado por um médico residente ali próximo.
Seu sono não tivera sonhos, porém, os pesadelos não tardariam a chegar.
Sobre o personagem real: http://www.todotango.com/Creadores/Creador.aspx?id=163" onclick="window.open(this.href);return false; (Aqui vocês podem ouvir áudios dele.)
http://agustinmagaldi.blogspot.com.br/" onclick="window.open(this.href);return false;
Sobre os personagens não-históricos: (Os que melhor aparecem na história.)
Rebeca Tsekub: Uma bela jovem na casa dos 23 anos, filha de mãe solteira apesar de ter tido uma figura paterna, de quem herdou o sobrenome. Uma esforçada e dedicada florista que ama tangos e se apaixonou por Agustín Magaldi embora não entenda o motivo desse amor, pois acha que ele nunca poderia correspondê-la. Ela não sabia o quanto estava enganada.
Loyola: O dono da floricultura onde Rebeca trabalha. Apaixonado por sua funcionária, sonha em casar-se com ela, porém, não "avança o sinal" por respeito à memória do senhor Tsekub, a quem tinha como um segundo pai. Um homem misterioso que não gosta muito de falar do passado.
Juan Pablo: Um corcunda originário do Leste Europeu que chegou à Argentina no auge da imigração e que mudou de nome para adaptar-se melhor à rotina portenha, tem um passado bastante nebuloso como criado de um nobre europeu, época da qual prefere esquecer. Profundamente apegado à Rebeca, a protege, se preciso, com sua vida.
Espero que gostem. Comentem, por favor, . Até a próxima, pessoal do fórum!