La gloria eres tú
Paquita observou carinhosamente o anel de diamante em seu dedo. Amanhã seria primeiro de maio. Dia dos Trabalhadores na maior parte do mundo, inclusive na Argentina. Para ela, porém, era o dia em que tinha nascido.
E nele ganhou o melhor presente de aniversário de sua vida: a celebração de sua eterna união com Leopoldo. O amava incondicionalmente. Nunca achou ser capaz de realmente apaixonar-se considerando o quanto amava seu bandoneón e a música nele executada. Era uma noite como as outras em que já havia tocado quando havia visto seu amado pela primeira vez. Desde então, ele nunca havia deixado de visitá-la. Nem mesmo em sua única viagem fora do país ainda em vida humana. E na noite em que ele a havia mordido e alimentado, sentira um êxtase tão belo quanto proibido. Afinal, era senso comum que moças de boa família não podiam mostrar que sentiam prazer. Era considerado inadequado.
Logo, porém, a vampira descobriu que sentir prazer era tão normal quanto caminhar ou tomar banho. Ela e Leopoldo amavam-se todos os inícios de manhã e dormiam enroscados pelo resto do dia. À noite, quando seu amado não tinha compromissos com o Priorado do Rio da Prata, os dois passeavam pelos Jardins de Palermo. Iam a algum show de tango nos bairros boêmios da cidade ou faziam qualquer outra coisa. E buscavam seu alimento. Às vezes, no entanto, ela caçava sozinha. De vez em quando gostava mais assim, pois tinha certa atração em exercer seus dotes sedutores de vampira. Jamais seria capaz de dividir cama com outro, porém, aprendera que não só isso era seduzir. A sutileza também seduzia.
Pensava nisso e em outras tantas coisas quando ouviu o piano localizado três quartos à direita. Guillermo gostava de tocar. Era um virtuoso dos grandes naquele instrumento. A vampira não reconheceu a música, pois nunca antes a ouvira, porém, achou a letra muito bela... ()
“Eres mi bien/ lo que me tiene extasiado./ Por qué negar,/ que estoy de ti enamorado?/ De tu dulce alma,/ que es todo sentimiento./ De esos ojazos negros,/ de un raro fulgor./ Que me dominan y incitan al amor./ Eres un encanto,/ eres una flor.
Dios dice que la gloria,/ está en el cielo./ Que es de los mortales,/ el consuelo, al morir./ Bendito Dios,/ porque al tenerte yo en vida,/ no necesito ir al cielo, tisu/ si alma mía,/ la gloria eres tú.”
A voz do melhor amigo de seu amado soava com uma comovente paixão misturada a uma dor parecendo infinda. Ela não entendia a razão de tanta dolência naquela voz tão bela. Imaginou qualquer coisa. Novamente olhou para seu anel e suspirou. Leopoldo não se encontrava em casa naquela noite. Paquita, por sua vez, não quis caçar. Preferiu alimentar-se do suprimento caseiro e permanecer em seu quarto lendo. Não fazia muito, quase morrera por culpa de uma conspiração armada pelo maior inimigo de Leopoldo, Mariano Amenábar. Tão fácil não perdoaria Nigel por ter quase feito aquilo.
O vampiro Sussex continuava cantando a mesma música. Era como se procurasse o tom perfeito para executá-la. Será que ele ia cantá-la na festa de amanhã? Paquita viu-se rindo. Seu adorável amigo sempre tão perfeccionista, sempre querendo tudo saindo da melhor forma. Isso era tão ele. Um pouco demais, ela diria. Levantou-se para dar uma melhor olhada no ensaio. Os pensamentos dele pareciam, de alguma forma, embaralhados. Só agora ela tinha notado tal coisa.
Sussex jamais ficava daquela forma, pensou ela espantada. A vampira não compreendia a razão daquela perturbação tão intensa. Era como se alguma coisa estivesse entalada na garganta do britânico. Entrou no dormitório enquanto ele novamente começou a tocar. Naturalmente, ele percebeu a presença dela, porém, manteve-se impassível. Ou pelo menos tentou, porque claramente notava-se um nervosismo fora do comum...
- O que você tem, Guillermo?
Ele a olhou com um estranho misto de alegria e dor. Não pôde responder à pergunta. Na verdade, não tinha a mínima coragem para tal. Sentia algo subir por seu estômago quando pensava. Deus, não podia! De forma alguma ela podia tomar conhecimento daquilo. Ou arruinaria a vida de todos. Especialmente a dela, que de nada tinha culpa. O culpado era e sempre seria ele! Porque seu coração havia lhe pregado a pior das peças: fazê-lo apaixonar-se pela pessoa errada.
Paquita o observou cuidadosamente. Queria entender o motivo de tanta aflição. Ele, por sua vez, virou-se de costas para ela como se sentisse intenso frio. De repente, os pensamentos dele se abriram para ela tal qual um leque. De maneira involuntária se mostraram. O que ela viu deixou-a muito desconcertada. Nunca poderia imaginar tal situação. Agora, porém, ela estava ali, bem clara aos seus olhos. Suspirou agoniada: - Desde quando?
Guillermo tristemente voltou-se: - Confesso não saber ou ter certeza de quando iniciou. O que sei é que você deu um novo sentido à minha vida. Mesmo eu sabendo que jamais terei seu coração porque ele pertence a Leopoldo.
- Você é tão humano, Sussex. E é isso que me faz gostar tanto de você. Porque sei que nunca você seria capaz de causar mal ao homem que eu amo ou a mim – respondeu ela com um triste sorriso. Desejava que seu grande amigo, considerado um irmão, encontrasse alguém para amar.
- Prefiro morrer a fazer qualquer maldade contra algum de vocês. Me agonia pensar que até mesmo você esteve sob ameaça por conta do cargo de Belmondo – o vampiro entristeceu-se.
- Você sabe que não temo. E nunca temerei. Descobri minha coragem no dia em que decidi tocar bandoneón. Não foi um começo fácil, mas consegui ser feliz enquanto fui fisicamente humana – disse ela agora mais alegre.
Guillermo aproximou-se e colocou as mãos sobre os ombros dela: - Eu não teria pedido melhor esposa para meu melhor amigo. Leopoldo fez por merecer seu amor.
Paquita emocionou-se com aquelas palavras. Afastou-se com delicadeza: - Desejo, do mais profundo do meu coração, que você encontre alguém que o ame tanto quanto eu amo meu Leopoldo.
- Me diga se posso tendo você por perto todas as noites. Responda-me: serei eu capaz de amar outra mulher quando você existe? – as palavras saíam com agonia, ditas por um coração tomado pelo amor.
- Não permita que eu seja uma venda para seus olhos. Jamais fui e jamais serei perfeita, Guillermo. Apenas quero seu bem. Peço a Deus que coloque uma boa alma em seu caminho para que você possa amá-la até o fim deste mundo – Paquita olhou-o tristemente.
Ele nada disse em resposta. Ela achou melhor ir para seu quarto. Sussex voltou ao piano para executar outros concertos. A vampira, já em seu quarto, chorou silenciosamente. Jamais desejou que Leopoldo e Guillermo por ela se digladiassem. Preferia a morte a vê-los brigar. Eles sempre haviam sido amigos. Não era justo ela ser a causadora de uma possível discussão. Não se achava melhor que qualquer outra para ser digna daquele amor nutrido por aquele considerado por ela um irmão. “Deus, por que o coração apronta essas coisas com as pessoas?”, perguntava-se ela enquanto ouvia-o tocar.
- Como dizia Shakespeare: “O coração tem razões que a própria Razão desconhece” – a reconhecível voz de seu amado veio da porta. Ela quase pulou de susto. Percebeu que ele sabia. Chorou novamente, agora apoiada sobre seu divã. Belmondo sentou-se junto a ela: - Por favor, não chore. Não gosto de vê-la sofrer por algo contra o qual nada pode ser feito.
- Como posso me sentir quando sei que podem brigar? – ela virou-se para ele banhada em lágrimas.
- Nós não iremos, minha amada. Como posso censurá-lo por amá-la? Quando ele jamais a tocou de modo indevido ou armou para nos separar? – o vampiro perguntava como se as respostas já estivessem com ele.
- Eu... não entendo – Paquita olhou-o cheia de dúvidas.
- Você, casada comigo desde cinquenta anos, já deveria saber que nós vampiros lidamos com certas questões de forma bem mais aberta que os humanos. Meu anjo, acha mesmo que eu faria qualquer coisa contra ele só por isso? Confio minha vida ao meu melhor amigo. Ele sempre provou, mesmo nas piores situações, onde tudo poderia acontecer, que é leal e verdadeiro. O fato de ele ter se apaixonado por você foi consequência da convivência. Você sempre se mostrou muito resoluta em todos os aspectos. Está sempre pensando no bem de todos acabando por quase deixar o seu em segundo plano. Diga-me: como é possível não estar apaixonado por você todo o tempo? – as palavras do espanhol, agora próximo à janela, comoveram o coração dela...
- Leopoldo... – ela, após levantar-se, aproximou-se dele. Foi beijada apaixonadamente. Sorriu quando ele parou: - É justamente por isso que eu te amo. Por você ser tão maravilhoso e ao mesmo tempo tão único.
- Todos são únicos de alguma forma, amada. Somos nós que precisamos aprender a ver isso se elas não quiserem mostrar por algum motivo. Há que se aprender a viver sem julgar – disse ele em resposta.
- Aprendo tanto com você. Não poderia ter pedido alguém melhor para meu marido – Paquita sorriu com uma pequena lágrima em seu olhar.
Belmondo limpou delicadamente aquela pequena lágrima com a mão esquerda. A outra afagava a dela, aonde estava o anel que há tanto tempo selara aquele belo compromisso.
Que duraria para sempre. E o dia seguinte serviu belamente para provar tal laço.